sexta-feira, agosto 06, 2010


Mirabilis – de veias ao sol, a produção literária contemporânea cabo-verdiana

 *Ricardo Riso

Após a Revolução dos Cravos em Portugal no 25 de abril de 1974 e a independência de Cabo Verde em 5 de julho de 1975, surgem diversas manifestações literárias estimuladas por uma jovem geração de poetas, iniciadora da reconfiguração das temáticas caras ao recente país. Reformulações estéticas e formais, lirismo, ironia, humor, erotismo e revisão crítica da história sob um olhar que converge a cabo-verdianidade e o universal se tornam imperiosos, combatendo, assim, “o mau tempo literário” predominante e de cariz cantalutista. De acordo com a Profa. Dra. Simone Caputo Gomes: “as questões consideradas como tradicionalmente ligadas crioulidade ou cabo-verdianidade são retomados em outro contexto, sob novos ângulos, visando a conjugação de aspectos nacionais e universais” (GOMES, 2008, p. 138). Essas mudanças manifestam-se durante os anos 1970 e 1980 em prêmios literários como os Jogos Florais 12 de setembro e em variadas publicações como Raízes, Voz di Povo, Ponto e Vírgula, Fragmentos, Sopinha de Alfabeto, Magma, Aurora e Artiletra que demonstram ideologias poéticas diversificadas e pluralidade estética.

Diante da efervescência literária desse período, atinge-se o necessário momento de reunir esses poetas do pós-25 de abril. Organizada pelo crítico literário e poeta José Luis Hopffer Almada, Mirabilis – de veias ao sol – antologia dos novíssimos poetas caboverdeanos, apresenta 57 poetas revelados nessa época. No prefácio da obra, Almada faz analogia à flor do deserto, a mirabilis, e procura mostrar a força de uma geração amargurada com os descumprimentos das promessas feitas pela revolução, e assim exprimir a força do verbo poético como local de reflexão do tempo em que viviam:

Fustigada pelos ventos (da incompreensão!), pelo sol (da hipocrisia!), pelos tempos vários do mau tempo literário, desse tempo querendo-se vegetação literária. No deserto, cresce a geração mirabílica, feita signo na margem desértica do mar. De veias ao sol. As veias da indagação. As veias alagadas da terra das estradas, da poeira do dia-a-dia, do massapé dos campos, do lixo dos caminhos suburbanos, do desespero recoberto de moscas, baratas e outros vermes. As veias loucas do mar, do marítimo lirismo dos dias afogados nos ciúmes dos montes. As veias, veias de vida, de morte, de desespero, das quatro estações místicas do que se medita no refúgio do silêncio. Veias do camponês e da enxada neste coito de séculos com a terra. Ao sol, hipócrita por entre a bruma e os cerros. Sol, signo de luz. Sol que ilumina. Sol que queima e ofusca o caminhar. Sol dependurado da perseverança secular. Mirabilis – de veias ao sol. Geração mirabílica indagando o sol. “No Deserto cresce a Mirabilis”. Diz o poeta Orlando Rodrigues. “Embora de veias ao sol”. Adita Rodrigo de Sousa, para que das imagens do deserto cresçam as palavras da nossa geração e delas reste, ao menos, o cadáver da poesia. Sugere Mito, o poeta plástico, ou que o cadáver se metamorfoseie em flor e espinho, num panorama azul, de onírico, sugere Mito, o plástico poeta. Uma única rosa é a Mirabilis, e dela queda um sol de sangue. O sol da poesia mirabílica.
(ALMADA, 1991. pp. 26-27)

A partir desse contexto e diante da diversidade dos nomes constantes em Mirabilis, fizemos alguns recortes para apresentar escritores consolidados com textos em prosa e poesia. É importante destacar que a chamada geração mirabílica não se configurou um grupo unido, com manifestos, dogmas etc., mas sim uma geração heterogênea, plural, que mantém a ótima qualidade da literatura de Cabo Verde, sedimentada por nomes como Pedro Cardoso, Eugénio Tavares, Jorge Barbosa, Manuel Lopes, João Manuel Varela, Mário Fonseca, Corsino Fortes, Oswaldo Osório e Armênio Vieira. Os nomes selecionados para esta pequena amostragem foram os de Dina Salústio, Filinto Elísio, Vera Duarte, José Luis Hopffer Almada, José Luiz Tavares, Mário Lúcio Sousa, Valentinous Velhinho e Tchalê Figueira, o único que não participou da antologia.

VERA DUARTE
  
Nascida na cidade de Mindelo, ilha de São Vicente, formou-se em Direito na Universidade Clássica de Lisboa, em Portugal. É ministra da Educação e do Ensino Superior, Juíza Desembargadora e presidente da Comissão Nacional dos Direitos Humanos e a Cidadania (CNDHC) de Cabo Verde. Desempenhou ainda diversos cargos  na área jurídica e no governo.

Na área de Literatura ganhou os Jogos Florais 76, em comemoração ao primeiro ano de independência do país. Em 1981 conquistou o 1º Prêmio no Concurso Nacional de Poesia. Em 2001, pelo conjunto da obra conquistou o "Prix Tchicaya U Tam'si de poésie africaine"; ganhou o Prémio Sonangol em 2003, dedicado a escritores de Angola, São Tomé e Príncipe e Cabo Verde. Publicou "Amanhã Amadrugada" (Lisboa: Vega, 1993; poesia), "O Arquipélago da Paixão" (Mindelo, Artiletra, 2001; poesia), "A Candidata" (Luanda: UEA, 2003; ficção), "Preces e Súplicas ou os Cânticos da Desesperança" (Lisboa: Piaget, 2005; poesia), “Construindo a Utopia” (ensaio) entre outros.

Sua poesia, assim como sua atuação política, manifesta a defesa incondicional da mulher, seus direitos, suas dores, o seu cotidiano sofrido e oprimido.

Som frenético de mulheres
Nostalgia de batuques não vividos
Em entardeceres sem néon
Nostalgia de pano amarrado na coxa
Coxa sensual de balancear cadenciado
Como este canto
Que se eleva no ar
E me envolve na terra
Nostalgia daquilo que sou

– Genuinamente -
Essa de mãos batendo no ritmo
Essa de voz cantante
Que salta para o terreiro(...)
Monda o milho
E carrega nas ilhargas
Os filhos que vão nascendo
Essa mulher única
Que ama sofre trabalha e dança
Com o mesmo esquecimento
E a mesma intensidade
Do transe hipnótico das coxas no batuque
(DUARTE, Vera. MUJER. Praia: OMCV, fev. 1984, p.16.)
 
De regresso ao lar, já cumprida a insuperável dualidade do meu ser essência aparência, quotidianamente exausta, a minha única vontade é deixar-me cair – inerte – sobre a cama e, sem despir o camuflado que me impõe a minha condição de guerreira... (...)
Perder-me.
Despir-me sim desta loucura que me rói e dói. Afinal a imagem sedutora daqueles que nos circundavam não trouxe genuínas emoções, pureza original, aquilo com que contávamos. E, com o olhar naufragado em desamparo e solidão, continuei carregando a minha paixão, apesar das juras nocturnas de que amanhã a compartilharia.
Despir-me sim do odor camuflado das coisas e do ar que sufocadamente me cerca. Sinto-me perseguida. Sem razão aparente mas perseguida. Ter-me-ei esquecido a mancha que permanentemente acompanha meus passos é apenas a minha sombra e não um qualquer processo persecutório movido não sei por quem, movido não sei por quê?
É esta paixão que não me deixa friamente analisar, dissecar, asseptizar. Como é do meu gosto. E como é linda esta folha de papel que nervosamente vou cobrindo de pequenas formas arredondadas que talvez morram no caixote de lixo mais próximo ou levem ao próximo milénio a mensagem do milénio mil, rica e sinuosa, vermelha como um grito, injusta e sombria, mas, acima de tudo, MULHER.”

(DUARTE, Vera. MOMENTO IX (mensagem ao próximo milénio que já não tarda. In: Amanhã amadrugada. Praia: Instituto Caboverdiano do Livro e do Disco, 1993. P. 37.)




DINA SALÚSTIO
 Chamada Bernadina Oliveira Salústio, nasceu em 1941 na ilha de Santo Antão. Sua obra apresenta-se em poesia na antológica coletânea “Mirabilis – veias ao sol” (1991), nos contos de “Mornas eram as noites” (1994), no romance “A louca do Serrano” (1998) e “Filhas do Vento” (2009), no ensaio “Insularidade na literatura cabo-verdiana” (1998) e entre diversos textos espalhados em várias publicações.
Dina Salústio foi uma das fundadoras da Associação dos Escritores Cabo-verdianos, assim como de diversas publicações literárias. Atuou como professora, assistente social e jornalista em Cabo Verde, assim como em Portugal e em Angola. Dirigiu também um programa de rádio dedicado a assuntos educativos e foi produtora de rádio. Trabalhou ainda para o Ministério dos Assuntos Exteriores de Cabo Verde.
“E é assim, inferindo diversos aspectos da condição feminina, “de mulher que se pensa e se escreve, procurando, além de expressar a intimidade de uma voz, dar voz a todas as mulheres” (GOMES, Ecos... p. 11) ora tratando um drama local, ora universalizando os sentimentos da mulher cabo-verdiana, lidando com problemas masculinos, dialogando com a insularidade e o eterno dilema evasão e anti-evasão, com os flagelos da seca e as características geográficas do arquipélago são alguns dos condutores da prazerosa leitura das curtas, porém belas e surpreendentes, narrativas de “Mornas eram as noites”.” (Ricardo Riso. Resenha crítica de Mornas eram as noites)
Fonte: artigo “Dina Salústio – Mornas eram as noites” publicado em http://ricardoriso.blogspot.com/2008/01/dina-salstio-mornas-eram-as-noites.html  www.infopedia.pt (adaptado)


 
O barranco olhava-a, boca aberta, num sorriso irresistível, convidando-a para o encontro final. (...)
Atirar-se-ia pelo barranco abaixo. Não perdia nada. Aliás nunca perdeu nada. Nunca teve nada para perder.
Disseram-lhe que tinha perdido a virgindade, mas nunca chegou a saber o que aquilo era.
À borda do barranco, (...), pensou nos filhos e levou as mãos ao peito.
O que tinha a ver os filhos com o coração? Os filhos... Como ela os amava, Nossenhor!
Apressou-se a ir ao encontro deles. O mais novito devia estar a chamar por ela.
Correu deixando o barranco e o sonho de liberdade para trás.
Quando a encontrei na praia, ela esperando a pesca, eu atrás de outros desejos, contou-me aquele pedaço da sua vida, em reposta ao meu comentário de como seria bom montar numa onda e partir rumo a outros destinos, a outros desertos, a outros natais.
(SALÚSTIO, Dina. Liberdade adiada. In: Mornas eram as noites. Colecção Lusófona. Lisboa: Instituto Camões, 1999. pp. 7-8)




JOSÉ LUIS HOPFFER C. ALMADA

Nascido em 9/12/1960 na aldeia de Pombal, cresceu na vila da Assomada - Concelho de Santa Catarina, na Ilha de Santiago. Participou de várias manifestações culturais em seu país, tais como o Movimento Pró-Cultura, a Associação de Escritores Cabo-Verdianos, as revistas Pré-Textos e Fragmentos (da qual foi o diretor) e a editora Spleen-Edições. Organizou a antologia “Mirabilis – de veias ao sol” (1991). Em poesia publicou “À Sombra do Sol I e II” (1990), “Assomada Nocturna” (1993), “Assomada Nocturna – Poema de NZé di Sant’ y Agu” (2005) e “Praianas – Revisitações do Tempo e da Cidade” (2009), o qual consagra a plena maturidade poética de José Luis Hopffer C. Almada, o seu apuro estético e formal, consubstanciado na sua incessante e incansável lapidação da palavra. Autor de “Sindromas de orfandade identitária e funcionalização político-ideológica nos discursos culturais caboverdianos” (separata da revista Direito e Cidadania) e coordenador da obra coletiva “O ano mágico de 2006 -olhares retrospectivos sobre a história e a cultura caboverdianas”. É autor de inúmeros artigos e ensaios, de teor literário, cultural e jurídico, dispersos por diversas publicações caboverdeanas e estrangeiras. Utiliza os nomes literários Nzé di Santý Águ, Zé di Sant´y Águ, Alma Dofer Catarino, Erasmo Cabral de Almada (poesia), Tuna Furtado (artigos e ensaios) e Dionísio de Deus y Fonteana (crónica literária e prosa de ficção).

Lembras-te, Julinho Damas
dos versos sonhadores de antónio nunes
aguinaldo fonseca gabriel mariano ovídio martins
do libertário onirismo dos poetas da nova largada
e de outros versados na arte poética de intervenção social
e de outros versejadores e de outros panfletários
e de outros trovadores dotados na ciência da revolta e do inconformismo
e de outros vates consagrados no manejamento do verbo
celebrizados pela subtileza da palavra contestatária
detonadora de ânimos novos
insurrectos a sotavento e a barlavento / ressurrectos nas ilhas e diásporas
exumando a completude do arquipélago caboverdiano
festejando a autosuficiência do continente cultural islenho
proclamando a plenitude do mundo que o crioulo caboverdiano criou
atroando a nação-tiro que, à sua revelia, saiu pela culatra do colonialismo
nos tormentos da saga dos tempos das trevas da longa noite
na bandeira negra famélica do mestre ambrósio na resiliência
de joão cabafume (...) nos recitais clandestinos de jorge barbosa (...) nas vozes telúricas de jaime de figueiredo baltasar lopes arnaldo frança teixeira de sousa e maria helena spencer nas vozes dissidentes clandestinas recitativas de (...) arménio vieira osvaldo osório (...) e em outras crónicas contra o arbítrio contra os desmandos contra as fomes contra o abandono do corpo cronicamente cadavérico do arquipélago?
(ALMADA, José Luis Hopffer. Praianas. Praia: Spleen Edições, 2009. p. 58-59. Poema atribuído a Nzé di Sant’Y Agu)


os povos africanos não morreram 
nem nunca morrerão shaka         
entretecidos 
com a memória desfalecida
de albert luthuli walter sisulu
ruth first e dulcie september

com o lento desembainhar 
da lança da tua nova nação
despontando com os indícios
do arco-íris dos seus gestos armados
por nelson mandela oliver tambo
joe slovo e outros sentenciados
em rivonia e outros condenados
de robben island e outros combatentes
das cidades loiras do apartheid
das martirizadas terras do exílio

(...) com os límpidos ditongos
de abel djassi
com as impolutas consoantes
de amílcar cabral

(...)com os fervorosos sermões
musicais de joseph kabassele  miriam
makeba fela kuty ali farka touré francis bebey

(...) com as rítmicas invectivas
de bob marley e das suas redemption songs
e das suas songs of freedom ressoando 
nos compassivos tempos de nelson mandela nas pós-invernais estações nos redentores vendavais
nas promessas pós-raciais das  esperadas américas de barack obama

os povos negros não morreram 
nem nunca morrerão shaka 
os povos africanos não pereceram
nem jamais perecerão
(ALMADA, José Luis Hopffer C. Australidades – Na Madrugada dos Sons. Poema atribuído a Erasmo Cabral D’Almada e enviado pelo autor em 03/02/2010.)
 


FILINTO ELÍSIO
 Filinto Elísio Correia e Silva, poeta e cronista, nasceu na cidade da Praia. É bibliotecário e administrador de empresas como formação acadêmica. Foi professor em Boston e em Somerville, nos EUA. Publicou “Do lado de cá da rosa” (poesia), “Prato do dia” (crônica), “O inferno do riso” (poesia), “Cabo Verde: 30 anos de cultura” (antologia), “Das hespérides” (poesia, prosa e fotografia), “Das frutas serenadas” (poesia) e “Li cores & ad vinhos” (poesia) e “Outros sais na beira mar” (romance).

“Um poder ilimitado para criar imagens, explorando ao extremo os sentidos das palavras, apresentando novas e surpreendentes significações em poemas que transportam o leitor a desvendar um sujeito lírico profundamente existencialista, proposto a metaforizar tudo aquilo que alimenta seu lirismo.

(...) Em Elísio, o excesso metafórico e o ardor semântico não são gratuitos, mas sim, fruto de uma cuidadosa e zelosa paixão pelo fazer poético. Intimista, lírica, exuberante, universal, assim é a poesia para e de Filinto Elísio. Um poeta que a reinventa, que mostra que a poesia ainda é a mais bela das artes.”
(Ricardo Riso. Texto de aba de capa do livro Li cores & Ad vinhos.)


De todas as estradas, algumas por andar,
As de sinuosa curva das palavras, a mais íngreme,
Com metáforas penduras ali no peitoril,
São as que, por visceral, me motivam à Poesia...

Não te direi tudo dos verbos, de como,
No topo de Abril, dos carapetos e cumes,
De outros parapeitos, onde a semântica, ciosa,
Se refugia silenciosa entre mim e o nada...

Virar, em passe de mágica, as cores de avesso,
Transmutar pelo revesso, fiapos soltos de rosa,
Prosa que também se solta as flores que voam...

Olhar, quando não sentir, só o das borboletas,
O dos arfares na calada e o dos suores receosos,
Deste recheio do êxtase, de tudo ser nada disto...
(ELÍSIO, Filinto. Êxtases. In: Li Cores & Ad Vinhos. Lisboa: Letras Várias, 2009. p. 81)


Tomemos a capital por exemplo. Praia é hoje uma cidade a pedir medidas urgentes. Vende-se tudo e mais alguma coisa nas ruas: alimentos, animais, remédios e CD piratas. A população alivia-se em qualquer lugar e os becos fedem a urina e fezes. Os arruaceiros brigam pelas ruas e as prostitutas vendem o corpo à porta dos hotéis e das boates. Na calada da noite, os impiedosos assaltam os transeuntes; os veículos são saqueados à porta de casa. As moradias são fortificadas e as empresas cercadas de guardas-nocturnos. (...) E o criminoso tenta impor um way of life. (...) Mas importa quebrar o silêncio. Gritar para poder existir. Contra o estado das coisas. O cidadão que conhece o drama da toxicodependência a cada esquina tem de legitimar e dar «carta-branca» às autoridades para um combate radical e sem misericórdia ao narcotráfico. Em nenhum lugar se combate a droga com indiferença, paninhos quentes ou morabeza! Há que declarar guerra…no mínimo!
(ELÍSIO, Filinto. Outros sais na beira mar. Lisboa: Letras Várias, 2009. p. 108-109)

VALENTINOUS VELHINHO
Valentinous Velhinho, nome literário de Valdemar Valentino Velhinho Rodrigues, nasceu em 29/05/1961 na Calheta de S. Miguel, Ilha de Santiago. Participou nos anos 1980 da Sopinha do Alfabeto, colaborou em revistas como Fragmentos e Artiletra, e seus poemas constam na antologia Mirabilis – de veias ao sol. Publicou os livros Relâmpagos em Terra (1995), Adeus Loucura, Adeus (1997), No Ponto de Rebuçados (2001), O Túmulo da Fénix (2003) e Tenho o Infinito Trancado em Casa.

Sua poesia “surpreende pelo tom incisivo, provocador, visceral, insólito, assim como pelas passagens que denotam um caráter mórbido, sepulcral, por vezes escatológico, a remeter ao poeta brasileiro Augusto dos Anjos (...). Trata-se de uma poesia superior explicitada pelo cunho universal, pelas questões metafísicas e existenciais, pela obsessiva temática da loucura, da morte e do suicídio, na contínua referência aos textos bíblicos e na interminável procura para decifrar o desconhecido. (...) Entretanto, o maior mérito de “Tenho o Infinito Trancado em Casa” está na exímia recriação dos haikais. Ao se afastar do cânone ocidental, o poeta encontra na concisão extraordinários e insólitos resultados.”
(Ricardo Riso. Resenha do livro “Tenho o Infinito Trancado em Casa” a ser publicada edição do dia 15/04/2010 do jornal A Nação)

POEMA A ANGELUS SILESIUS E A DEUS
I
Começa o místico por desprezar primeiro os bens
Do mundo. O poeta por desprezar o mundo começa. (p. 7)

XXIV
O Esquecimento é isto tudo e a vida. Aquilo a que portanto
O Esquecimento Esquecimento chama será o quê? (p. 11)

TENHO O INFINITO TRANCADO EM CASA
L
Deus ao homem deu
O desobediente Éden
E à serpente a obediente pátria. (p. 131)

CLXXXVIII
Inda mais cíclico do que tudo
É o que sem inda
Ter vindo está por vir. (p. 159)

LII
Meu Deus, o que no interior
De ventre de mulher
Aprenderia o labirinto? (p. 132)
CV
Vitória mais sofrida
Do que a do suicida
Não há. (p. 142)
CXVI
É fértil a seca na terra
Onde caiu a chuva
E nunca mais se levantou. (p. 145)
CLV
É a um Deus
Que o abandona
Que Cristo o espírito entrega? (p. 152)
(VELHINHO, Valentinous. Tenho o Infi-nito Trancado em Casa. Praia: Artiletra, 2008)


MÁRIO LÚCIO SOUSA
Seu nome, Lúcio Matias de Sousa Mendes, conhecido como Mario Lúcio Sousa, nasceu no Tarrafal, Ilha de Santiago, a 21/10/1964. Destaca-se como músico, pintor e ativista cultural.
Suas principais obras são: Nascimento de Um Mundo (poesia, 1991); Sob os Signos da Luz (poesia, 1992), Para Nunca Mais Falarmos de Amor (poesia, 1999), Os Trinta Dias do Homem mais Pobre do Mundo (Ficção, 2000 – prêmio do Fundo Bibliográfico da Língua Portuguesa, 1ª edição), Adão e As Sete Pretas de Fuligem (teatro, 2001), dentre outras peças teatrais mais recentes.
A respeito de “Nascimento de um mundo”, José Luis Hopffer Almada afirma que: Ressalta no livro O Nascimento de um Mundo, de Mário Lúcio Sousa, a ressonância épica, por vezes de tom lúdico, a qual é incorporada na sua poesia de teor mítico-regenerativo.
Poesia mítico-regenerativa, a qual extravasando quer o mito hesperitano de Pedro Cardoso e José Lopes, quer a poética heróico-teluricista de T. T. Tiofe e Corsino Fortes, recria Cabo Verde e a sua aparição das águas, com recurso à Bíblia, à antiguidade clássica europeia (com referências a Prometeu, a Epicuro e a Miletos, à Biblioteca de Alexandria, à Guerra de Tróia, à ilha de Juno, aos cantos gregorianos, às aleluias bachianas), bem como à mitologia africana (com a exumação da deusa Elegba, do percurso do jogo do wari e dos kikuyos, nossos ancestros obrigados) e inspirando-se no rosto actual bem como nas raízes e na fisionomia histórico-culturais de cada uma e de todas ilhas de Cabo Verde.


Nascimento de um Mundo
PRELÚDIO
O prenhe barro que sustinha o mar
abriu-se como uma boca ou uma flor
e o sopro de um deus imaginário
- que já existia antes de Deus –
fez abrir um pedaço do Mundo
cuja alma já não cabia no corpo…
e nasceram as ilhas
         que nadavam e nadavam.
As ilhas nascem nadando como as crianças nascem chorando,
mas no gérmen tudo é diferente:
as crianças nadam muito tempo antes de chorar
e as ilhas choram muito tempo antes de nadar
os dois prantos sob o signo de um pranto mestiço
de água e fogo.
(a) LUZ
LAVA e
(a) DOR.
Assim será. Assim foi, creio eu:
Dez embriões num ventre
dez vozes num parto
dez ilhas no mar e
Eu assisti ao nascimento de um mundo
que gerou o fogo
e ficou elevado o umbigo da terra
ou vulcão
ou a raiz que evoca a diferença e a identidade.
Tudo passou num segundo
e depois - conceito que foi instante, logo e agora –
o deserto… o inaudível … a luz
e eu mil novecentos e sessenta e quatro anos depois atrás.
(SOUSA, Mario Lúcio. Nascimento de um Mundo. 1991, pp. 7-8)

 José Luís Tavares

 Nasceu no Tarrafal, Ilha de Santiago, é o mais galardoado dos escritores cabo-verdianos. Dentre várias premiações, venceu em 2008 e 2009 o prêmio “Literatura para Todos”, do Ministério da Educação do Brasil, com os livros “À Bolina em Redor do Natal” e “Lisbon Blues”. Em Cabo Verde, seria ainda distinguido, em 2009, com o prémio Pedro Cardoso, com o livro “Tempu di Dilubri (escrito em crioulo).
Além dos livros citados, constam “Paraíso Apagado por um Trovão” e “Agreste Matéria Mundo”. Este ano saiu do prelo “Cidade do Mais Antigo Nome” pela editora portuguesa Assírio & Alvim, seus poemas em parceria com as fotografias do português Duarte Belo.
(José Luís Tavares: O Poeta de Todos os Prémios, matéria publicada no jornal Notícias Cabo Verde em 25/02/2010 e enviada pelo autor.)
José Luis Hopffer Almada descreve assim o poeta: “Apaixonado (diria até fanático) cultor de poesia, insaciável na perscrutação do insondável para além do real quotidiano e na busca do novo da linguagem, municiado com os conhecimentos da técnica do verso, da tradição poética e da poesia contemporânea lusógrafas, da teoria da literatura e da filosofia que a formação universitária e um trabalho quotidiano, persistente, as leituras, múltiplas e transpirantes, os dias insones e as noites de noctívago lhe propiciaram, José Luís Tavares propôs-se, pois, ser um partícipe efectivo e fecundo na invenção de um dizer novo não só na poesia caboverdiana, como também em toda a poesia de língua portuguesa.”


1 .
Descer — ao chão antigo,
agreste, familiar; às ombreiras
sem brasão onde nem trompas
matinais nem plenipotenciária
voz de mando.

Regressar — à vida rude, elementar,
veredas de antigos passos,
emboscadas de vizinhos,
castos gritos de meninos,

sonhadas façanhas marinheiras,
narradas não em épicos cronicões
onde mastros cruzes naves
fingem vida quando ruína.

Desacontecidos sucessos
são matéria deste livro, precário
edifício, como tudo o que é erguido
pelo cuspo da poesia.

Pôr em verbo o que vida fora?
Em dramático lance contar do assombro?
Ou por subtil engenharia escavar o ínfimo?
(TAVARES, José Luiz. Limiar. In: Paraíso Apagado por um Trovão. Assomada: Universidade de Santiago, 2010. p. 8)


Isto aqui é o paraíso –
Fazer uma mija contra a sebe,
Sem que a bófia nos interpele,
Embora o frio nos morda a pele
E mil dele eu te deva.

Alguém chamaria a isto vida.
Diógenes teria encontrado aqui
O seu homem. Goethe o proto-tipo.
Ovídio não lamentaria o seu exílio
alta estima tenho por ele
Embora não perceba o latinório.

Amigos na folia, vejo o cão
E perdigão. Mas uns bacanos
Armados em al capone
Semeiam deliciosa confusão.
Quando todos aguardavam o encore
Abalaram de roldão.

Na contramão, cismando, ainda
Lhes perguntei se de onde vinham
A manhã se bordava a fogo,
Mas apenas a pólvora dos impro-périos
E um arroto de aguardente velha deixaram
Por essa pretérita manhã do burgo.
(TAVARES, José Luis. Postal do Intendente. In: Lisbon Blues. São Paulo: Escrituras, 2008. p. 47)

 TCHALÊ FIGUEIRA
Carlos (Tchalê) Figueira nasceu em São Vicente a 2/10/1953. Trabalhou em Basileia – Suiça de 1974 até 1985. Artista plástico renomado, reside e trabalha no Mindelo – São Vicente desde 1985.
Periodicamente escreve e publica textos poéticos e de ficção em jornais e revistas. Em 1992, lança “Todos os naufrágios do mundo”, seguido por “Onde os sentimentos se encontram” (1998) e “O azul e a luz” (2002), todos de poesia. Estreia na ficção com duas publicações: “Ptolomeu e a sua viagem de circum-navegação” e “Solitário”, ambas de 2005.
As experiências nem sempre prazerosas na diáspora são o grande destaque do seu ainda inédito Contos da Basileia.

(...) Trancando a burra num ferro para atar bicicletas faço um sinal de cumplicidade ao porteiro do Atlantis um amigo Napolitano e grande aliado dos artistas porque costuma matar-nos in extremis a fome soltando saborosos sanduíches depois da meia-noite quando o local encerra as suas portas. Pãezinhos que sobram todas as noites e se não forem comidos acabam em contentores de lixo. Porra! Aqui na Suíça até o lixo é luxo! (...) (p. 50)

(...) Depois de um fastidioso dia na Kanton Spital carregando pacientes em cadeiras de rodas pelos sinistros labirintos da instituição e de ter que confrontar-me com as mais desconhecidas doenças eu e Mário combinamos ir ao Rheinfelderhof dançar encher a cara e talvez engatar umas gajas. É o nosso roteiro todas as sextas feiras nesta cidade que pouco ou nada conhecemos. (...) Temos ambos vinte anos uma libido em chamas e a pequena Basileia lado proletário da cidade como o nosso território de caça. Para quem não conhece a cidade devo explicar-lhe que ela está dividida pelo rio Reno e unida por várias pontes que separam a grande Basileia burguesa da pequena habitada em sua maioria por emigrantes (...) (p. 59)

(...) apanho com as mãos a tremer a garrafa de um repelente rum da Martinica e trago o diabo que Deus me perdoe mas oh meu Deus é mesmo o diabo essa bebida que comparada com o nosso bom grogue de Santo Antão nem em sonhos lhe chega aos calcanhares. (...) (p. 89)

(...)  Fomos viver durante semanas junto ao mar que tanta falta me faz na Suiça e me dá fortes saudades de Cabo-verde… (...) (p. 130)
(Excertos que compõem o livro “Contos da Basileia” enviados pelo autor em 29/09/2009.  Livro ainda no prelo a ser publicado pela Dada Editora – Cabo Verde)

 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALMADA, José Luis Hopffer C. Alguns marcos da emergência de novos paradigmas na poesia caboverdeana contemporânea (quarta parte). Acesso em: 16/09/2008. Em O Liberal: http://liberal.sapo.cv/index.asp?idEdicao=50&id=17566&idSeccao=533&Action=noticia
ALMADA, José Luis Hopffer. Praianas. Praia: Spleen Edições, 2009.
ALMADA, José Luis Hopffer C. Almada. Mirabilis – de veias ao sol. Praia: Instituto Caboverdeano do Livro, 1991.
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VELHINHO, Valentinous. Tenho o Infinito Trancado em Casa. Praia: Artiletra, 2008.

MENSAGEM DE RICARDO RISO PARA OS LEITORES DE LITERACIA:


É com imenso prazer que inicio a colaboração com o Literacia. Essa bela iniciativa disponibilizou mais um espaço para a divulgação das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, a saber: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

Aqui procurarei enfatizar a produção diversificada, universal, erótica e metapoética representada pelos nomes contemporâneos dessas Literaturas, ainda com pouca divulgação fora da esfera do meio acadêmico. Portanto, falaremos de Filinto Elísio, Sangare Okapi, João Tala, Andes Chivangue, Antonio de Nevada, Conceição Cristóvão, entre outros partícipes inovadores da palavra poética.

Seguindo essa linha, no meu primeiro texto apresento um pequeno panorama da recente produção cabo-verdiana.

Além da Literatura, abrirei espaço para comentar obras de artistas plásticos desses países, sempre que possível for, traçarei paralelos entre o texto literário e as artes plásticas.

Sinto-me honrado em contribuir com este espaço. Sintam-se livres para críticas, sugestões, comentários diversos acerca do que será postado.

Um grande abraço,
Ricardo Riso
[Profa. Dra. Sonia Santos e Ricardo Riso, programa "Africanidade" ] 

[*Ricardo Riso é artista plástico e graduado em Letras pela Universidade Estácio de Sá; concluiu (ouvinte) a pós-graduação lato sensu em História, Cultura e Literaturas Africanas e Afro-brasileiras da Universidade Castelo Branco; é titular da seção de crítica literária e integrante do conselho editorial da revista acadêmica África e Africanidades (www.africaeafricanidades.com); autor do blog Riso - Sonhos não envelhecem - http://ricardoriso.blogspot.com. Colaborador do semanário cabo-verdiano A Nação. Na área de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa apresentou comunicações em congressos e seminários, e ministrou palestras em instituições como UFRJ, UNESA, FERLAGOS e Pedro II.]

2 comentários:

  1. Parabéns pelo primoroso trabalho. De fato, poucos conhecem os Poetas que apresenta, bom saber que se dedica a estes estudos. Seu texto é brilhante!
    Aguardo a proxima edição para ler novos trabalhos de sua autoria.
    Luiza de Campos Araujo- Pernambuco

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  2. Ricardo,
    Obrigada por fazer parte de Literacia,para nós uma honra contar com Você. Um jovem e brilhante escritor.
    A UNESA se orgulha de do seu crescimento .
    Até setembro!
    Obrigada, e meu abraço amigo, anamerij

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Obrigada por sua visita!
Boas Leituras.