terça-feira, maio 03, 2011


A QUESTÃO DO FEMININO E A RECONFIGURAÇÃO DA MOÇAMBICANIDADE EM BALADA DE AMOR AO VENTO



RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo estudar o romance Balada de amor ao vento, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, analisando como a obra aborda a questão das relações de gênero e como contribui para a reconstrução da identidade moçambicana após o período colonial. Narrado em primeira pessoa por uma mulher, o romance dá voz a uma personagem antes silenciada historicamente e denuncia a condição inferior feminina em Moçambique, desconstruindo signos socioculturais em busca de discutir a realidade vigente e reconfigurando a identidade nacional.
Palavras-chave: literatura africana, paulina chiziane, pós-colonialismo, literatura feminina.
Balada de amor ao vento, da escritora Paulina Chiziane, representa um marco na literatura moçambicana. Publicado em 1990, o romance foi o primeiro no país a tematizar o quotidiano do universo feminino, evidenciando signos socioculturais que denunciam o lugar secundário reservado à mulher. Mais do que retratar a situação feminina em um Moçambique colonizado, Paulina Chiziane põe em discussão como as negociações transculturais e as mudanças de sistemas políticos apenas perpetuaram a[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 2]submissão feminina, ao mesmo tempo em que, dando voz a essa personagem marginal da história do país, contribui para a reconstrução da identidade moçambicana no período pós-colonial. Concentraremo-nos, neste estudo, em analisar tais signos e compreender como a autora os desconstrói em busca da reconfiguração da identidade nacional e da vitalização da presença feminina na construção do cenário histórico e cultural de Moçambique.
A história nos é contada pela personagem Sarnau, mulher marcada pelo amor e pelo abandono. Escrito em primeira pessoa, o romance caracteriza-se por um modo lírico de narrar, o que, segundo Inocência Mata, reforça o processo rememorativo. A narrativa tematiza a memória como veículo de revitalização identitária, no caso de Balada de amor ao vento, “uma memória individual que se confronta com os ditames de uma sociedade tradicionalista” (MATA, 2000, p. 136). A personagem inicia a história já envelhecida, saudosa dos tempos de juventude, contrapondo-os com o seu presente, miserável. Ao questionar-se sobre a existência ou não do amor, Sarnau faz uma comparação da mulher com a terra, convidando o leitor a conhecer o universo feminino:
Tenho uma filha crescida que ainda estuda embora já tenha estudado muito. Umdia  disse-me que a terra é redonda. Por fora é toda verde e lá no fundo tem um centro vermelho. Como o melão. Que a terra é a mãe da natureza e tudo suporta para parir a vida. Como a mulher. Os golpes da vida a mulher suporta no silêncio da terra. Na amargura suave segrega um líquido triste e viscoso como o melão.
Quem já viajou no mundo da mulher? Quem ainda não foi, que vá. Basta dar um golpe profundo, profundo, que do centro vermelho explodirá um fogo mesmo igual à erupção de um vulcão (CHIZIANE, 2003, p.12).
A imagem comparativa da mulher com a terra, antes quase exclusivamente vinculada ao projeto nacionalista, vem agora carregada de subjetividade. É sobre a condição feminina no que diz respeito ao casamento, à poligamia, ao adultério que [ Nº 11 | Ano 9 | 2010 ] Estudos (1) p. 3]Paulina se põe a tratar. Com isso, uma personagem antes ignorada pelo discurso dominante ganha voz, reinscrevendo a história sob outra ótica. O foco agora são as relações de gênero estabelecidas no interior da sociedade, na busca de uma tomada de consciência de que essas relações desiguais são construídas socialmente. Ana Mafalda Leite (2003, p.78), tratando da relação entre questões coloniais e questões patriarcais, afirma que o tratamento dos temas sobre a mulher pressupõe uma visão alternativa e crítica em relação à visão construída por escritores-homens, sendo que a narrativa de gênero estabelece um diálogo crítico com a narrativa centralizada numa tradição masculina, permitindo, também, um alargamento temático, a partir de dentro, criando uma abertura no cânone literário, em formação. Por sua experiência particular, Sarnau mostra-nos como a mulher é criada para servir ao homem, para suportar sua indiferença, sua agressividade, sua rejeição, como se isso fosse um fardo natural o qual a mulher deve carregar e aceitar. Em várias passagens do romance, a personagem narra não apenas os fatos que comprovam a desigualdade de gênero, mas também enfatiza o discurso produzido pelos mais velhos e, em especial, pelas mulheres. Ainda que seja a mais atingida com essas práticas, destaca-se, assim, que a mulher é a principal difusora dessa ideologia. Afinal, é a ela atribuída a responsabilidade pela criação dos filhos. Em razão do seu casamento, Sarnau participa de um ritual de preparação no qual as mulheres de sua família juntam-se para dar-lhe o que a personagem chama de “conselhos loucos”:As minhas mães, tias, avós, fecharam-me há uma semana nesta palhota tão quente e dizem que me preparam para o matrimônio. Falam do amor com os olhos embaciados, falam da vida com os corações dilacerados, falam do homem pelas chagas desferidas no corpo e na alma durante séculos, Sarnau, fecha a tua boca, esconde o teu sofrimento quando o homem dormir com a tua irmã mais nova[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 4]mesmo na tua presença, fecha os olhos e não chores porque o homem não foi feitopara uma só mulher (CHIZIANE, 2003, p. 44).
A mulher traz no corpo e na alma as marcas dessa submissão secular, tendo-lhe sido ensinada como suportar tais açoites. Embevecida pelo fato de casar-se com o futuro rei da sua tribo, Sarnau demora a compreender o que significam tais palavras, questionando-se pela insistência dos ensinamentos: “Mas por que a tristeza? Não será o casamento um acontecimento feliz?” (CHIZIANE, 2003, p. 46). Quando ela própria experiencia essas práticas, Sarnau rememora os ensinamentos na busca de suportar, resignadamente, a sua condição. Ao ver o marido com outra em sua cama, corre para aquecer a água do banho do casal e ao ser chamada, retorna pondo-se de joelhos perante o “soberano”, baixando os olhos “como manda a tradição”:
- A água está pronta?
- Sim, pai.
- Hum, parece que choraste. Morreu alguém?
Arremessou-me um violento pontapé no traseiro que me deixou estatelada no chão.
Minutos depois voltei à posição inicial. Enviou-me uma bofetada impiedosa que fez saltar um dente [...] (CHIZIANE, 2003, p. 56).
No artigo “A escrita no feminino e a escrita feminista em Balada de amor ao vento e Niketche, uma história de poligamia”, Patrícia Rainho e Solange Silva (2007,p.523) afirmam que em Balada de amor ao vento não há questionamento da condição da mulher na sociedade moçambicana, restringindo-se a uma escrita no feminino:... a personagem [Sarnau] não se questiona quanto a certos valores instituídos e se estes limitam ou não as suas escolhas enquanto mulher. Existe apenas a narração de toda uma vida no feminino, através de Sarnau, que é preenchida com o legado [Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 5]cultural da oratura moçambicana e um ‘passeio’ pela vida cultural de Moçambique em tempo colonial através daquela personagem feminina, criada por Paulina Chiziane.
Definir toda a condição social apresentada no referido livro como um passeio pela vida cultural de Moçambique parece extremado reducionismo quanto ao discurso construído em Balada de amor ao vento. Se em nível do enunciado Sarnau não questiona explicitamente os valores instituídos pela sociedade na qual está inserida, em nível da enunciação, podemos, sim, identificar a discussão da submissão feminina, o modo como tanto a poligamia como a monogamia submetem a mulher aos interesses masculinos e aos da sociedade em geral, a influência dos mais velhos na vida dos mais novos, a questão da assimilação, a negociação estabelecida entre a cultura tradicional e os diferentes discursos históricos conservando o controle patriarcal exercido sobre as mulheres.
O fato de a narradora ser uma personagem iletrada que vive em um território ainda colonizado também precisa ser considerado. Além do mais, as escolhas narrativas não podem ser pensadas ingenuamente. O tom irônico e satírico utilizado pela autora para narrar os acontecimentos dão a medida da consciência crítica dessas escolhas. O trecho citado acima, por exemplo, em que o marido utiliza-se de ironia para debochar da mulher por seu suposto ciúme, seguido de um pontapé no “traseiro” e uma “bofetada impiedosa” que lhe faz “saltar um dente” não pode ser encarado como simples narração de uma vida no feminino, é também denúncia da realidade da mulher em África. O próprio questionamento que Sarnau se faz sobre o casamento ser ou não um acontecimento feliz aponta para a reflexão sobre a insatisfação da mulher, sobre a desigualdade da relação nessa instituição, além de outros momentos presentes ao longo do romance que despertam tais discussões. Há várias passagens em que a personagem[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 6]se enxerga como uma mercadoria. Sarnau assim descreve o momento da negociação do seu lobolo, embalado pelo mugir das trinta e seis vacas que constituiu o seu pagamento:“[...] Fazem-se cumprimentos e discursos; dinheiros tilintam. Coloca-se na esteira a cabaça de rapé e o pano vermelho; exibem-se peças de vestuário, pulseiras, colares, meu Deus isto é uma feira, eu estou à venda” (CHIZIANE, 2003, p. 38). O discurso de uma de suas sogras também surpreende, com um tom que desumaniza as esposas no casamento polígamo: “[...] Nós estamos aqui a mais, para aumentar o número de cabeças neste curral, e dar o nosso esforço nas machambas, apanhar com os feitiços das outras, o que é que nós somos?” (CHIZIANE, 2003, p. 53). Porém, não é só na relação poligâmica que a mulher sofre. Sarnau também se torna vítima da monogamia.
No início da sua juventude, apaixona-se por Mwando, que ela diz ser “um rapaz diferente, fala bem, conversa bem e tem cá umas maneiras!...” (CHIZIANE, 2003, p.15). Mwando tem, na verdade, características de um assimilado, estuda para formar-se padre e, como cristão, defende a monogamia. Ambos se apaixonam e vivem um romance, mas Mwando deixa-a para estabelecer um casamento monogâmico com Sumbi, mesmo ao saber que Sarnau encontrava-se grávida. Já na sua maturidade, após ter abandonado seu marido polígamo e ser deixada pela segunda vez por Mwando, Sarnau engravida de outro homem que também não reconhece o filho por se dizer cristão: Sou tão feliz com os meus dois filhinhos. O Joãozinho também não tem pai. O homem soube encher-me a barriga para abandonar-me logo em seguida. O pai afasta-o da sua mesa, não o deixa conviver com os outros irmãos, diz que é por ele ser casado e para mais não fica bem a um cristão dar a entender que tem filhos por aí. Mwando também é cristão, mas abandonou-me com uma criança no ventre. Ser cristão é uma coisa, mas a perversão e o afastamento dos deveres paternais porque se é cristão, é coisa que ainda não entendo bem (CHIZIANE, 2003, p. 137).[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 7]
Outra vez a ironia da autora. Entende-se muito bem: à mulher, não lhe sobram alternativas. Neste momento do romance, Sarnau põe-se a comparar a poligamia e a monogamia, e conclui amargamente: “Com a poligamia, com a monogamia ou mesmo solitária, a vida da mulher é sempre dura”. Para Hilary Owen (2008, p. 166), mais do que Balada ser um romance que retrata a vida da mulher no período colonial, a obra também representa, alegoricamente, o período de pós-independência, mais especificamente, a segunda metade da década de 1980, período em que foi escrito o livro. Para a autora, Paulina Chiziane retrata as formas como a cultura tradicional patriarcal de sua região interagiu com discursos históricos enfatizando o controle patriarcal exercido sobre as mulheres em troca de poder e valores entre os homens.
Dentre as suas políticas oficiais de modernização de Moçambique, a Frelimo havia condenado a prática da poligamia e do lobolo, impedindo o ingresso de homens “tradicionalistas” no partido. No entanto, Hilary Owen (2008, p.166-167) destaca que,em 1989, em ocasião do quinto congresso do partido, a Frelimo suspendeu essa sanção,a fim de receber mais apoio da comunidade internacional e também de apoiantes partidários, já que os líderes “tradicionalistas” continuavam a exercer influência importante sobre a população. Tal concessão foi considerada por muitas mulheres como uma traição neopatriarcal aos seus interesses. Importante ressaltar que Paulina vive na sua juventude a luta pela independência, tendo experimentado, também, o sabor da distopia. As reivindicações femininas passam a ter, então, valor de troca, evidenciando que a condição da mulher é fruto não simplesmente da questão colonial, mas sim de uma inferiorização de sua condição em detrimento do homem. Em Balada de amor ao vento, ainda que Mwando sofra sanções das leis de sua tradição e da colonização[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 8]portuguesa, o seu estatuto é sempre superior ao de Sarnau. Ainda que restrita, ele tem a possibilidade de escolha. A ela, resta-lhe a prostituição.O romance demonstra que a colonização das mulheres não foi idêntica à dos homens. Neste sentido, Balada funciona como um “novo começo” estratégico para a consciência política das mulheres moçambicanas, na medida em que expõe um mito marxista anticolonial de falsas origens, segundo o qual as mulheres foram assimiladas pelo masculino por serem alegadamente oprimidas ao nível econômico pelo capitalismo nos mesmos termos que os homens, sem qualquer referência a especificidades sexuais (OWEN, 2008, p. 174).
Outro aspecto que revela o tom pós-colonial do romance é a desconstrução de certas crenças que alicerçaram a busca etnográfica das raízes de uma identidade moçambicana perdida. De acordo com Hilary Owen, Chiziane utiliza de forma irônica a nostalgia pastoril e o mito do Gênesis como forma de contra-narrar a nação e o passado nacional em termos simbólicos femininos. A narrativa se inicia com Sarnau mostrando-se saudosa de sua juventude às margens do rio Save, em oposição ao seu presente repugnante na cidade. Estabelece-se a oposição entre o rural e o urbano, entre o Paraíso e a Queda. Resgata, nos moldes nacionalistas, a busca pelo sujeito africano imaculado, livre da influência colonial. Podemos ir além e observar o modo como Mwando é descrito inicialmente, fazendo-se referência a um nativo idealizado, forte, guerreiro.
Sarnau descreve a cerimônia de apresentação de jovens iniciados, aclamados pela comunidade como heróis após terem passado pelas duras provas dos ritos de iniciação.
Um, no entanto, destaca-se aos olhos de Sarnau. É Mwando, mas não apenas aos seus olhos, pois descobre ser ele o rapaz de quem os mais velhos comentavam na noite anterior: “Disseram que ele foi distinto e comportou-se lindamente mesmo nas provas mais difíceis” (CHIZIANE, 2003, p. 13). No entanto, essa distinção não se sustentará ao longo da história, mostrando-se fraco aos olhos da tradição e também segundo os[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 9]moldes do colonizador. Esse herói moçambicano é, na verdade, um assimilado, ou melhor, uma personagem marcada pelo conflito cultural, já que não partilha das crenças africanas, mas tampouco se torna ou é reconhecido como um português. Ainda que seminarista, participa dos rituais de iniciação e vive um romance com Sarnau, e por conta do descobrimento desse relacionamento, acaba sendo expulso do seminário.
Abandona Sarnau grávida, visto que sua família arranjara-lhe um casamento monogâmico e lobolado com Sumbi, mas por esta não cumprir com as exigências de uma esposa nos moldes tradicionais, é rechaçado pelos mais velhos por representar um risco às tradições, reagindo com os argumentos de um assimilado. Afasta-se da família para preservar seu casamento, mas é traído e abandonado pela esposa. Ao envolver-se com a mulher de um sipaio (soldado que defendia a administração colonial) e ser encaminhado à esquadra portuguesa, toda a sua destreza com a língua do colonizador não foi suficiente para livrá-lo da deportação, pelo contrário, soa como escárnio aos ouvidos dos portugueses. Além do mais, seus documentos não lhe garantiram os privilégios de um assimilado, sendo visto como um oportunista. Quando deportado para Angola, aproveita-se dos conhecimentos adquiridos no seminário para livrar-se do trabalho pesado e ganhar dinheiro. Reinventa-se como “Padre Moçambique”, entoando salmos em rituais fúnebres para os muitos companheiros mortos nas plantações:...um irônico e irresponsável “Pai da Nação” que trai os seus putativos companheiros cidadãos, a sua raça e os seus aliados de classe, tão prontamente como fez com Sarnau. Mwando concilia a proteção dos seus companheiros de trabalho e das autoridades coloniais em parte porque finalmente aprendeu a imitar os comportamentos apropriados ao colonialismo (OWEN, 2008, p. 171).
O colonizador, em Balada de amor ao vento, presentifica-se pela figura do assimilado, sem outra presença significante na obra. O foco é o sujeito moçambicano,[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 10]com suas crenças, influências e contradições. Se tomarmos o romance como uma representação alegórica do final dos anos de 1980, Mwando não representaria, também, muitos dos companheiros de luta da autora que traíram seu povo após a Independência em favor de seus interesses pessoais? Ao relatar a viagem para o degredo, a narradora faz menção aos escravos libertos que se comportam cruelmente com seus irmãos escravos. Por meio de uma série de analogias, a autora explora e expande essa relação a outras gerações, como a fazer um momento de reflexão que ultrapassa o episódio da deportação, voltando novamente para o enredo do romance:Os pretos gritavam para outros como se pretos não fossem. O escravo liberto torna-se tirano. O homem alcança as alturas cavalgando nos ombros dos outros. A galinha no poleiro caga despreocupada para as que estão em baixo ignorando que no próximo pôr do sol a situação pode inverter-se. A força de um mede-se pela fraqueza do outro. Um irmão mata outro irmão para demonstrar a sua força ou sobrepor-se-lhe. Em todas as gerações há exemplos de indivíduos que dizimam outros para assegurar o poder. Os capatazes pretos empurravam os pretos, obrigando-os a subir a escadaria para a proa do navio (grifo nosso) (CHIZIANE,2003, p.118-119).
Outro signo que Paulina se apropria para desconstruí-lo é o mito do Gênesis. Mwando e Sarnau são comparados ao casal original da Criação. Assim como Eva tornou-se a traidora por mediar a mensagem da serpente, em termos coloniais, a mulher é vista como traidora por se caracterizar como facilitadora da penetração no paraíso nativo através da mediação lingüística e sexual. Hilary Owen (2008, p. 170) destaca que Paulina Chiziane inverte os processos de culpabilização da mulher expondo como a culpa transcultural e a transgressão masculina se fazem projetar sobre as mulheres e, portanto, mostrando que o homem colonizado é tão ou mais suscetível de agir como tradutor traidor. A comparação entre os casais é explicitamente feita quando se descreve [ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 11] o namoro entre Mwando e Sarnau. Enquanto ela compreende o início do relacionamento sexual de forma natural, como uma sintonia entre homem e natureza, Mwando entende o como pecado, sendo Sarnau a culpada por lhe tirar a inocência. Interessante observar como a serpente é vista de forma totalmente diferente pelas duas personagens. Quando se põe a refletir sobre sua iniciação sexual com Mwando, Sarnau remete-se à flora e à fauna como cúmplices do seu amor: “A serpente, junto ao ninho, fecha os olhos, discreta, não vá ela interromper os beijos dos pássaros que se amam, crescem e se multiplicam” (CHIZIANE, 2003, p.19). Diferentemente de Sarnau, tomado por suas crenças católicas, Mwando fica espantado: “Como Adão no Paraíso, a voz da serpente sugeriu-lhe a maçã, que lhe arrancou brutalmente a venda de todos os mistérios. Sim, escutou os lábios de uma mulher pronunciando em sussurros o seu nome, despertando-o do ventre fecundo da inocência” (CHIZIANE, 2003, p. 19) .No entanto, não é Sarnau, mas sim Mwando que se comporta como traidor. É ele quem assimila a cultura do colonizador, traindo tanto Sarnau como os seus companheiros do degredo em Angola ao trabalhar a favor dos interesses dos portugueses. Esses, vendo sua facilidade em lidar com os demais escravos por meio da manipulação da palavra cristã, o tomaram como aliado: Muito depressa os colonos reconheceram nele o homem de que precisavam, o pacificador das revoltas nas roças, com a doutrina do sofrimento da terra e recompensa no céu. Deram-lhe um estatuto diferente e casa independente, tinha amigas em enxame e das boas. Trabalhava pouco nas machambas, ocupando a maior parte do tempo nos rituais da Igreja (CHIZIANE, 2003, p.127). As relações de poder assimétricas também se refletem na obra de Paulina pelo cruzamento da expressão oral e escrita. No sistema colonial, o homem obteve maior contato com a escritura portuguesa, enquanto as mulheres são vistas como guardiãs [ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 12] culturais da oralidade africana primordial. Em Balada de amor ao vento, essa assimetria se reflete pelo iletramento de Sarnau e pelo domínio por Mwando do sistema de escrita da língua portuguesa. Mais uma situação que reafirma a propensão do homem colonizado para a traição. Não é a mulher, mas o homem, Mwando, que se apropria da língua do colonizador, de sua cultura, e as utiliza para trair o seu povo. A oralidade perpassa o romance por meio de Sarnau, que ao longo do texto relata as tradições, as crendices, os rituais e insere historietas, típicas da tradição oral, dentro da história principal. Owen, porém, contesta esta visão estritamente oral em que aparentemente se encaixa a personagem feminina. De início, ela julga o iletramento de Sarnau como uma invenção nativista, já que ela se põe a escrever sua história. Além disso, o tom irônico utilizado para toda a tradição cultural, reconstruindo-a, transforma-a em uma contranarração do discurso estabelecido, ao mesmo tempo em que responde à ânsia de se reconhecer a identidade africana, mais especificamente a moçambicana, já que suas histórias serão lidas principalmente pelo público estrangeiro, visto que, embora seja o português a língua oficial de Moçambique, uma  pequena porcentagem da população domina seu sistema de escrita. Tal aspecto reflete uma das características mais marcantes da escrita de Paulina Chiziane: a evocação da tradição como força propulsora para a modernidade do relato, fazendo com que memória e tempo presente, ancestralidade e modernidade confluam em sua narrativa. Em Balada de amor ao vento, a autora agencia a oralidade com uma tipologia de texto tipicamente européia: o romance.
A sabedoria oral narrada no texto é ironizada pelo discernimento satírico e retrospectivamente experiente de Sarnau sobre as crenças tsonga conservadas nestas declarações orais, à medida que Sarnau contesta os constrangimentos[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 13] tradicionais da obediência feminina, aos quais as mulheres da sua família a sujeitam (OWEN, 2008, p. 173).
Há, pelo menos, mais um momento em que a autora ironiza as convenções estabelecidas, dialogando com a cultura do colonizador. Ao ser abandonada pela segunda vez por Mwando, Sarnau põe-se a procurar-lhe desesperada pela praia e reporta-se às ondas do mar, indagando sobre seu amado, à maneira das cantigas de amigo: “Ó ondas do mar, não viram o meu amor? Verdes palmeiras, aves do céu, peixes, caranguejos, barcos acostados, por onde anda meu amor?” (CHIZIANE, 2003,p. 113). Mas ninguém a escuta, nem a natureza, nem os homens que ali estão, vendo-se novamente sozinha, cumprindo sua sina de mulher: “As águas não me responderam continuando o seu marulhar maravilhoso.[...]Os homens continuavam absortos, ninguém me via, ninguém me ligava e eu sofria sozinha. O sol da manhã foi mais amigo, espalhando a minha imagem nas águas em rebuliço, mostrando bem transparente a desgraça que era o meu fardo” (CHIZIANE, 2003, p.114)
Esse fardo, Sarnau compartilha com as outras mulheres, explicitando tal cumplicidade em vários momentos da obra. O mais significativo, porém, é em relação a Phati, a quinta esposa do seu marido Nguila Zucula, a qual trouxe muito sofrimento a Sarnau. É a sua existência que a personagem responsabiliza o distanciamento do marido e é também por sua denúncia que nossa protagonista é obrigada a fugir com Mwando para não ser assassinada por Nguila. Ambas se odeiam por disputar o amor do mesmo homem no casamento polígamo. No entanto, Sarnau vê-se obrigada a dar à filha seu nome, já que a menina estava entre a vida e a morte e sua doença era atribuída ao sofrimento da alma da rival. Nomear a filha com o nome da rival é irmanar-se com o sofrimento de Phati, é simbolizar que ambas são vítimas de um mal maior. Neste [ Nº 11 | Ano 9 | 2010 Estudos (1) p. 14] sentido, Balada de amor ao vento é uma obra feminista aos moldes africanos, ela simboliza não uma bandeira hasteada contra o mundo masculino, mas instrumentaliza a mulher a compreender a sua posição no cenário social a que pertence, recrutando-a a uma luta que busca uma relação menos desigual entre os sexos. As mulheres dos seus livros, como a própria Paulina afirma, lutam por “um espaço de liberdade dentro de uma relação de interdependência e complementaridade com o mundo masculino” (GOMES, 2001, p.7).
Referindo-se à Balada de amor ao vento, Hilary Owen (2008, p.165) afirma que “o romance provocou certo grau de escândalo porque quebrou o tabu cultural através da representação de uma mulher que expressa o desejo sexual”. Em um de seus pronunciamentos, alguns anos após sua publicação, Paulina Chiziane exprime certa ansiedade em ouvir críticas no que diz respeito à qualidade estética de sua obra:A reação ao meu livro? Bom, é o primeiro livro feminista que sai em Moçambique.
Até agora ainda não encontrei muitas pessoas que me falassem da qualidade em termos estéticos, a esse nível superior.[...] Realmente, em termos de tema, eu penso que consegui atingir o objetivo. Agora, em termos estéticos... (CHIZIANE, 1994,p.299-300).
Anos depois, com a expansão ainda incipiente, porém significativa, dos estudos das obras literárias africanas de expressão portuguesa, a qualidade estética do livro parece ser inquestionável. O tom lírico que perpassa o romance, a simbologia que constrói, ao mesmo tempo em que desconstrói signos que sustentaram a estética anterior, além de inúmeros outros aspectos incapazes de serem abordados neste breve trabalho faz de Paulina Chiziane uma das maiores escritoras africanas da atualidade.
Reduzir o romance a um mero passeio pela vida no feminino é desconsiderar a força da enunciação que tanto enriquece a linguagem literária.[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 15]

ABSTRACT: The present paper aims to study the novel Balada de amor ao vento by the Mozambican writer Paulina Chiziane, analyzing how the work approaches the gender relationship point and how it contributes to the rebuilding of the Mozambican identity after the colonial period. It is narrated in the first person by a woman, the novel gives opportunity to a character who was historically silenced before and denounces the feminine inferior condition in Mozambique, by getting socialcultural signs apart in order to discuss the current reality and reshaping the national identity.
Keywords: african literature, paulina chiziane, postcolonialism, feminine literature.

REFERÊNCIAS
CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. 2 ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.

CHIZIANE, Paulina. Entrevista concedida à revista Maderazinco. Disponível em:
http://www.maderazinco.tropical.com.mz/edicIII/entrevista/paulina.htm, acesso em: 01 de set.de 2004.

CHABAL, Patrick. Vozes moçambicanas. Literatura e nacionalidade. 1 ed. Lisboa:Vega, 1994.

LEITE, Ana Mafalda. Paulina Chiziane: romance de costumes, histórias morais. In:Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Colibri, 2003. p.75-87.

MATA, Inocência. Paulina Chiziane: uma coletora de memórias imaginadas. In:
Metamorfoses. Lisboa: Edições Cosmos, 2000.
| Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 16
OWEN, Hilary. “A língua da serpente: a auto-etnografia no feminino em Balada de
amor ao vento de Paulina Chiziane”. In: RIBEIRO, Margarida Calafati e MENEZES,

Maria Paula (org.). Moçambique. Das palavras escritas. Porto: Afrontamento, 2008. p.161-175.

RAINHO, Patrícia e SILVA, Solange. “A escrita no feminino e a escrita feminista em Balada de amor ao vento e Niketche, uma história de poligamia”. In: MATA, Inocência e PADILHA, Laura (org.) 

A mulher em África. Vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Colibri, 2007.

TEDESCO, Maria do Carmo Ferraz. Narrativas da moçambicanidade. Os romances de Paulina Chiziane e Mia Couto e a reconfiguração da identidade nacional. Brasília: Universidade de Brasília, 2008, (tese de doutorado).

Por: Érica Alves Rossi (Mestre em Estudos Literários, UNESP – Araraquara)

segunda-feira, maio 02, 2011

Albas


De: Jorge de Oliveira – O País

NINGUÉM MEU AMOR


[Magritte]
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.




NÃO SOU ANTERIOR A ESCOLHA

Não sou anterior à escolha
ou nexo do ofício
Nada em mim começou por um acorde
Escrevo com saliva
e a fuligem da noite
no meio de mobília
inarredável
atento à efusão
da névoa na sala.






A UM FILHO MORTO

Ontem a comoção foi da espessura dum susto
duma árvore correndo
vertiginosamente para dentro do desastre
E já não choramos. Passamos
sem que o mais acurado apelo
nos decida
Nas camisas
teu monograma desanlaça-se.
Tua mão vê-o nos céus nocturnos
sabe que há uma ígnea
chave algures
Minha tristeza não tem expressão visível
como quando a chuva cessa
sobre a dádiva fugaz do nosso sangue
que hoje embebe a terra
É tal a ordem em nós
que um odor a bafio sai de nossas bocas
e uma teia de aranha interrompe o olhar
que te envolveu em vão.



O LIMITE DIÁFANO

Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí os versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.



HÁ POETAS COM MUSA

Há poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.


(Maputo) - Sebastião Alba, poeta moçambicano, dá, neste livro, uma autêntica lição de vida, intelectualidade, grande erudição e atenção à sabedoria que acompanha os humanos. O que é este “Albas”? É um diário de vida, notas que o SA foi escrevendo, dia-a-dia, acompanhando e criticando a vida como uma forma de evitar a morte, depois da experiência amarga por que passou numa instituição para dementes.

  1.  Um Homem completo, sem a parte material, já que, apesar da grande riqueza e domínio da consciência de vida, SA furtou-se à parte administrativa, seguiu, e isso vê-se neste diário, um regime de exclusão (da riqueza que não seja a meramente intelectual) social, vivendo só para si, sem relações humanas com o exterior.
  2. “A poesia não é só o domínio da língua, até porque ela é indomável. Mas a ternura pelos fracos: as crianças, as mulheres (tão vulneráveis), os velhos já senis. E os pobres animais bravios. Às vezes acordo, às quatro da manhã, a pensar em pardais nos ramos, com o bico sob a asa, fustigados pela chuva, à espera de que o sol raie.”
  3. Custa acreditar que existam pessoas assim (ainda existem? Talvez não), que vejam o mundo ao contrário, que vivam a contra senso, onde todos vão para a direita e eles acabam por ir no sentido oposto – uma espécie de negação da vida.
  4. Terá sido por opção própria ou por imposição das circunstâncias em seu redor? Estar-se-á perante um caso de culto da não vida? Do vício do à rasca? Hoje, faz-se tudo por dinheiro, perdeu-se a solidariedade, afundou-se o Muito Obrigado, elevou-se o Quanto é, a sobrevivência de um implica matar a do outro, os direitos de um não terminam onde começam o do outro (como se diz), começam em cima do outro.
  5. “Nos últimos 30 anos, já 30 tipos disseram que eu não sou um mau escriba; outros 30 que sou um bom sacana; 30 crianças agradeceram-me, com um beijo, as guloseimas; 30 outras esqueceram-se disso; pelo menos 30 pessoas murmuraram à minha passagem; 30 abraçaram-me com afecto; 30 pegaram-me furiosamente pela gola da camisa; e 30 deram-me um jeito com os dedos para que eu não fizesse má figura, ali onde estavam”.
  6. A música clássica reclama um lugar interessante neste “Albas”, fazendo companhia a um cidadão solitário, cheio de dignidade, muito culto, vazio de afecto. O diário, falado na primeira pessoa, doutro modo não seria de esperar, situa-se entre Moçambique, terra que o acolheu, e Portugal, onde passou os seus últimos dias.
  7. “Meu pai morreu; o Virgílio Ferreira também. Nenhum deles estará no mesmo substrato da memória dos homens. Mas queria falar de outra coisa, desta juventude. Quanto mais convivo com ela, em viagem, nos lugares por onde passo (e são muitos), menos acredito naquilo por que, alguns de nós, lutaram: ajudá-la a pensar.”
  8. Tem-se de (quase) tudo, nestas notas, a morte de Samora Machel, num desabafo à viúva, as esmolas que pediu, os polícias que o importunavam ou os guardas que não o deixavam dormir em locais que ele achava poderem servir de aconchego nocturno.
  9. E é também uma obra de amor, que o autor sente pelas filhas, por Che Guevara, seu ídolo, e ódio, sempre que vê uma asneira, uma situação em que a deselegância empurra os Bons Modos para o lado.
  10. “Nunca nos apercebemos dos acontecimentos mais solenes. Qual de nós se lembra de ter nascido? Qual de nós se recorda do momento exacto em que adormece? (e morre, às vezes, durante o sono)? Ou se apercebe, quando faz amor, de ter gerado um filho? A sombra do Universo recobre-nos, e ainda bem. A morte, não tenho qualquer dúvida, virá assim: com um leve suspiro exalado.”
  11. Existe um ponto da sabedoria que nos faz muito mal; quando se sabe muito, critica-se tudo e todos, não se consegue lugar nem pessoas com quem viver, a impaciência triunfa e rebolamos para um abismo onde a vida em comunidade se torna impossível. Saber muito torna-se uma espécie de veneno ou de feitiço que se vira contra o detentor, torna-o praticamente irracional, acabando por levá-lo à morte.

De: Jorge de Oliveira – O País

    quinta-feira, março 10, 2011

    Ano Internacional dos Povos Afrodescendentes 2011


    Ano Internacional dos Povos Afrodescendentes 2011 

    Um ano dedicado aos afrodescendentes

    “Este Ano Internacional oferece uma oportunidade única para redobrar nossos esforços na luta contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e outras formas de intolerância que afetam as pessoas de ascendência africana em toda parte.”
    (Navi Pillay, Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos)
    Estima-se que 150 milhões de pessoas que se identificam como sendo de ascendência africana vivem na América Latina e no Caribe. Muitos outros milhões vivem em outras partes do mundo, fora do continente africano. Ao proclamar o Ano Internacional, a comunidade internacional está reconhecendo que as pessoas de ascendência africana representam um setor específico da sociedade, cujos direitos humanos devem ser promovidos e protegidos.
    As pessoas de ascendência africana são reconhecidas na Declaração e no Programa de Ação de Durban1 como um grupo de vítimas específicas que continuam sofrendo discriminação, como legado histórico do comércio transatlântico de escravos. Mesmo afrodescendentes que não são descendentes diretos dos escravos enfrentam o racismo e a discriminação que ainda hoje persistem, gerações depois do comércio de escravos.

    Para corrigir os erros do passado

    “Este é o ano para reconhecer o papel das pessoas de ascendência africana no desenvolvimento global e para discutir a justiça para atos discriminatórios correntes e passados que levaram à situação de hoje”
    (Mirjana Najcevska, Presidente do Grupo de Trabalho das Nações Unidas de Peritos sobre Pessoas de Ascendência Africana)
    O racismo obsceno que foi a base do comércio de escravos e da colonização ainda ressoa hoje. Ele se manifesta de diversas maneiras, às vezes sutilmente, às vezes inconscientemente, como preconceito contra as pessoas com pele mais escura.
    Para encontrar formas de combater o racismo, a ex-Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos criou o Grupo de Trabalho de Peritos sobre Pessoas de Ascendência Africana, encarregado de recomendar medidas para promover a igualdade de direitos e oportunidades. Foi criado em 2001 para analisar a situação e as condições de africanos e pessoas de ascendência africana, a fim de enfrentar a discriminação que elas sofrem.
    O Grupo de Trabalho concluiu que alguns dos mais importantes desafios que enfrentam as pessoas de ascendência africana dizem respeito à administração da justiça e seu acesso à educação, emprego, saúde e habitação.
    Em alguns países, embora possam ser uma minoria, as pessoas de ascendência africana constituem uma parte da população carcerária desproporcionalmente alta percentagem e recebem sentenças mais duras do que os da etnia predominante. O enquadramento racial2 – que resulta na sistemática segmentação de pessoas de ascendência africana por policiais – criou e perpetuou grave estigmatização e estereótipos dos afrodescendentes como dotados de uma propensão à criminalidade.
    Em muitos países com grande população de afrodescendentes, este setor da sociedade tem menos acesso e níveis mais baixos de educação. As evidências mostram que, quando as pessoas de ascendência africana têm maior acesso à educação, participam de forma mais igualitária em todos os aspectos políticos, econômicos e culturais da sociedade, bem como no avanço e no desenvolvimento econômico de seus países. Da mesma forma, elas encontram-se em melhores condições para defender seus próprios interesses.
    Povos Afrodescendentes no Chile. Foto: ACNUDH.
    Povos Afrodescendentes no Chile. Foto: ACNUDH.
    O Grupo de Trabalho também constatou que os afrodescendentes sofrem de desemprego em um nível mais elevado do que outros setores das sociedades em que vivem e de acesso restrito à saúde e à habitação, muitas vezes devido à discriminação estrutural que está incorporada dentro de suas sociedades.
    O Grupo de Trabalho salienta que a coleta de dados desagregados sobre a base da etnia é um aspecto importante de abordagem dos direitos humanos de afrodescendentes. As políticas de governo para combater o racismo e a discriminação não podem ser corretamente formuladas, muito menos aplicadas, se essa informação não estiver disponível.

    A Campanha Global

    Navi Pillay, Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos“O Ano Internacional deve se tornar um marco na campanha em curso para promover os direitos das pessoas de ascendência africana. Merece ser acompanhada de atividades que estimulem a imaginação, aprimorem nossa compreensão da situação das pessoas de ascendência africana e seja um catalisador para uma mudança real e positiva na vida diária de milhões de pessoas ao redor do mundo.”
    (Navi Pillay, Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos)
    A Assembleia Geral da ONU proclamou 2011 como o Ano Internacional dos Povos Afrodescendentes3, citando a necessidade de fortalecer as ações nacionais e a cooperação internacional e regional para assegurar que as pessoas de ascendência africana gozem plenamente de direitos econômicos, culturais, sociais, civis e políticos. O Ano visa ainda promover a integração de pessoas de ascendência africana em todos os aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais da sociedade, e promover maior conhecimento e respeito pela sua herança e cultura diversificadas. O Ano Internacional dos Povos Afrodescendentes foi lançado no Dia dos Direitos Humanos, 10 de dezembro de 2010, pelo Secretário-Geral da ONU, Ban Ki-moon.
    O principal objetivo do Ano é aumentar a consciência dos desafios que as pessoas de ascendência africana enfrentam. Espera-se que o Ano promova discussões com vários parceiros, e que estes proponham soluções para a questão.
    Durante 2011, diversos eventos internacionais serão realizados. Em 2 de março, em Genebra (Suíça), um painel de discussão com a participação dos Estados-Membros e da sociedade civil abordará as questões de direitos humanos das pessoas de ascendência africana durante a Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Nesta mesma semana, em 7 de março, uma rodada de discussões será realizada pelo Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, também em Genebra. Essas discussões servirão para aumentar a conscientização sobre as causas e consequências da discriminação contra as pessoas de ascendência africana e promover a visibilidade de seus diversificados patrimônio e cultura.
    Também em março, o Grupo de Peritos sobre Pessoas de Ascendência Africana vai discutir formas de contextualizar o Ano Internacional, ilustrando o porquê de sua necessidade. Esta reunião será realizada em Genebra de 28 de março a 1º de abril. O Ano Internacional será encerrado com a convocação de um debate de alto nível sobre as conquistas das metas e dos objetivos do Ano, realizado em Nova York em setembro, durante a sessão ordinária da Assembleia Geral da ONU.
    Uma coalizão de organizações da sociedade civil criada para promover o Ano realizará memoriais, seminários, eventos culturais e outras atividades ao redor do mundo para sensibilizar a opinião pública sobre a contribuição dos descendentes de africanos ao patrimônio mundial, identificando os obstáculos que ainda precisam ser superados. Todos, e em particular as próprias pessoas de ascendência africana, são encorajados a realizar atividades para contribuir para o sucesso do Ano.
    A resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas sobre o Ano Internacional também incentiva os Estados-Membros e todos os doadores relevantes a contribuir com fundos para as atividades durante o ano.
    Visite a página do Grupo de Trabalho de Peritos sobre Pessoas de Ascendência Africana clicando aqui.

    Sobre o Escritório de Direitos Humanos da ONU

    Escritório de Direitos Humanos da ONU (ACNUDH)O Escritório de Direitos Humanos da ONU, que faz parte do Secretariado da ONU, cumpre o mandato único de promover e proteger todos os direitos humanos. Sediado em Genebra, também está presente em 50 países.
    Chefiado pela Alta Comissária dos Direitos Humanos, cargo criado pela Assembleia Geral em 1993 para liderar os esforços da ONU em direitos humanos, age com base no mandato dado pela comunidade internacional para proteger e defender os direitos humanos universais. Para obter mais informações, visite www.ohchr.org e www.acnudh.org
    Acesse a resolução da Assembleia Geral que proclama 2011 o Ano Internacional dos Povos Afrodescendentes:

    quarta-feira, março 09, 2011

    "Sou Feliz Porque Venho Marcando o Meu Tempo"

    [Escrito por Frederico Ningi]

    Entrevista de: Isaquiel Cori
    Discreto, silencioso, Frederico Ningi tem vindo a percorrer um caminho singular na literatura angolana. A poesia, nele, não se reduz apenas à escrita, faz parte da sua vida, do seu quotidiano, é a sua visão do mundo e o seu modo de existir.
    Cultiva sistematicamente o intimismo, a introspecção e em determinado período da sua vida foi um praticante apaixonado do yoga. Também é desenhador e fotógrafo. As linhas dos seus desenhos e as suas imagens fotográficas são, outro tanto, o prolongamento da sua poesia. Publicou Os Címbalos dos Mudos, poesia e desenho, Infindos nas Ondas, poesia, e Títulos de Areia, poesia e softgravura.

    Discreto, silencioso, Frederico Ningi tem vindo a percorrer um caminho singular na literatura angolana. A poesia, nele, não se reduz apenas à escrita, faz parte da sua vida, do seu quotidiano, é a sua visão do mundo e o seu modo de existir. Cultiva sistematicamente o intimismo, a introspecção e em determinado período da sua vida foi um praticante apaixonado do yoga. Também é desenhador e fotógrafo. As linhas dos seus desenhos e as suas imagens fotográficas são, outro tanto, o prolongamento da sua poesia. Publicou Os Címbalos dos Mudos, poesia e desenho, Infindos nas Ondas, poesia, e Títulos de Areia, poesia e softgravura.


    P - Fale-nos do ambiente em que se desenvolveu a sua infância...
    R - Eu sou o filho mais novo de uma família de oito pessoas. Sou filho de gente pobre mas tive o privilégio de ser o caçula. Nasço em Benguela, no bairro do Cotrel, e tive a sorte de ter herdado do meu pai os livros que ele foi usando na sua vida de religioso cristão. Depois da sua morte, herdei uma Bíblia bilingue volumosa (português-umbundo). O meu irmão mais velho, Domingos Faustino, que era professor, gostava muito de ler. Dele, depois da morte do pai, recebia as mesadas com as quais comprei muitos livros. Também tive a sorte de ter relações com pessoas a nível do bairro e da escola que também gostavam muito de livros.
    P - Em que circunstância é que passa da leitura para a criação literária?
    R - A minha relação com o livro começou desde tenra idade. Lembro-me de que quando tinha para aí seis anos eu e o meu irmão mais velho fomos levar o almoço ao serviço do nosso pai, que era pedreiro. O pai estava sentado, na obra, com um grande amigo, o padre Manuel. A obra era aquilo que viria a ser o lar dos rapazes e o meu pai já era um grande mestre. Os dois, essa é uma imagem que jamais esquecerei, liam e discutiam a Bíblia. Em todo esse percurso tive sempre a meu lado o meu irmão que era até, e até agora é, professor, e me levou a outros caminhos como, por exemplo, os da pintura e da fotografia.
    P - Como é que sai de Benguela para Luanda? O que o leva a partir para Luanda?
    R - Parto para Luanda quando tinha à volta de dezanove anos. A idade e o espírito de aventura impulsionaram-me a dar outros saltos na vida. Sentia a necessidade de respirar outros ares.
    P - Já tinha parentes a viverem em Luanda?
    R - Parentes como tal não tinha. Fui vivendo em casa de amigos, amigos que por muitas afinidades transformaram-se em meus parentes. É o caso do Dias Júnior (realizador de televisão e publicitário), que para mim é um irmão não pela relação de consanguinidade, mas porque somos consofredores, os seus pais também são tocoístas, tal como os meus, e conheciam-se. Vim a Luanda em 1981/82.
    P - Esse período coincide, mais ou menos, com toda aquela movimentação literária em torno das brigadas jovens de literatura, que marcou a história da literatura angolana. Naquela altura enquadrou-se em todo aquele movimento?
    R - Eu nunca estive ligado a associações. O associativismo, nem político nem intelectual, nunca me marcou. O que me moveu mesmo para a criação literária foi um bichinho que já tinha dentro de mim e as relações que fui tendo com pessoas como o Dias Júnior, o Luís Kandjimbo, etc. Com estes eu tenho uma relação que já vem desde a infância. Lembro-me que, ainda em Benguela, íamos de noite à praia Morena recitar poesia. Formávamos um grupo de jovens para o seu tempo estranho ao tempo, pelo facto das nossas inquietações, das nossas indagações em torno da vida.
    P - Quando vem a Luanda, aos dezanove anos, o Frederico Ningi já estava decididamente direccionado para a criação literária?
    R - Para falar a verdade, a literatura já existe em mim desde a tenra idade. Eu me sinto um escritor mas me considero mais como um artista no sentido lato da palavra. Eu sou um homem que vive sempre inquieto e essa inquietação move-me sempre para muitas interrogações, para essa necessidade interna de exprimir os meus sentimentos, tanto na escrita como noutras disciplinas da arte, na pintura e na fotografia.
    P - A criação artística em si obedece sobretudo a uma necessidade de auto-expressão, a factores de satisfação íntima e não propriamente à necessidade de conhecer o outro, o mundo?
    R - É fundamentalmente essa necessidade endógena e até não pensada de querer respostas às coisas que são as minhas inquietações. Essa necessidade é intestinal, até.
    P - Das expressões artísticas que pratica (poesia, pintura e fotografia), qual é a que está mais de acordo consigo?
    R - Eu gosto de dizer que sou profundamente um artista. Fiz cursos de bateria (percussão) e guitarra. Fui sempre um jovem muito inquieto. A inquietude permanente é que me dá alento para essas coisas da vida.
    P - Um artista tão autêntico como o Ningi como é que viveu essa mancha da nossa história que foi a guerra?
    R - Vivi como todos os angolanos que sofreram e choraram. A minha arte foi o chão onde consegui esculpir todo o sofrer desses anos todos de guerra. Como sabes, a minha arte exprime todo o sofrimento dessas dezenas de anos de sofrimento do povo angolano.
    P - Sente que a sua poesia tem sido devidamente descodificada pelos leitores?
    R - Não sei. Sei que é uma poesia que de repente marcou, e tenho orgulho nisso, porque nesse espaço que é a minha Pátria consegui conquistar o meu espaço. Sou feliz porque tenho estado a marcar o meu passo nesse tempo.
    P - A sua poesia tem marcas específicas, como, por exemplo, a utilização de maiúsculas mesmo no interior das palavras. O que o levou, no princípio, a enveredar por essa forma?
    R - Foi um processo. Essa coisa de escrever também tem o seu lado de satisfação interior. De repente senti o orgasmo, quando comecei a negritar, a encontrar as maiúsculas como uma forma grande e grata de alegria artística.
    P - Como artista, sente-se realizado?
    R - Como artista, estou a percorrer o caminho da procura da satisfação máxima. A realização não existe. Há o sentido do rigor, da entrega, do trabalho que me expõe sempre para outros caminhos que são infindos.
    P - Quais são as leituras fundamentais que o terão influenciado?
    R - Li tantos livros! Lembro-me que, em casa, ainda em Benguela, apanhei «sustos» de autores enormes como, por exemplo, Júlio Verne. Quando li as Vinte Mil Léguas Submarinas fiquei encantado, fascinado, mas também apavorado. Apanhei também «sustos» com Maurice Bhering, um autor inglês que escreveu o livro O Trono e o Altar e que me encantou bastante, apesar de ser miúdo ainda. Fascinou-me sobretudo um personagem que era nobre e percorreu o mundo pensando que encontraria a felicidade fora da sua terra mas que acabou por regressar às suas origens. Essa coisa de termos um chão e a alegria de pertencermos a um chão, a uma terra, é uma coisa que me fascinou e que me fez entender-me melhor. Mas há outras leituras de outros autores. Há o grande mestre Octávio Paz; neste momento estou a ler o seu livro A Outra Voz. Tenho o defeito de ler vários livros ao mesmo tempo.
    P - A Bíblia continua a ser um dos seus livros de cabeceira?
    R - A Bíblia continua a ser o primeiro e será o último livro. Continua a ser o caminho de que nunca me distanciei.
    P - Porquê esse fascínio quase total pela Bíblia?
    R - A Bíblia é a grande lição de literatura. Lá tens tudo, tens viagens enormes como a criação da vida, o enigma no sentido literário das coisas, a interpretação dos fenómenos da vida. Tu tens viagens enormes no sentido poético, prosaico, filosófico, sociológico, de uma forma interminável. A Bíblia é um grande mestre e uma grande lição.
    P - Esse encantamento pela Bíblia induz-me a pensar que o sentimento religioso está bastante enraizado em si. É verdade?
    R - É. Apesar de não estar mais ligado à religião que me fez homem, que é o tocoísmo, continuo ligado à religião em geral de uma forma profunda. A leitura da Bíblia, a religião, transporta-nos para olhares e visões múltiplas, fantásticas, da vida. Eu vivo aqui, à beira-mar, e o mar para mim tem este sentido metafórico da religião. Deus está implantado em todo o ser e em todo o mar.
    P – Concretamente, como tem sido a sua relação com o mar, aqui tão próximo de si?
    R - É uma relação de encantamento, de paixão. O mar é o meu companheiro.
    P - Não é por acaso que o mar constitui um dos principais temas dos seus livros e está implícito no título de um deles, Infindos nas Ondas.
    R - O mar está sempre no meu caminho. Como sabe, eu sou um jovem do litoral.
    P - Fale-nos de novidades literárias.
    R - Nisto não gosto de prometer, mas sim de fazer. Por isso tenho um capítulo, n’ Os Címbalos dos Mudos, "Do elogio às mãos". Eu continuo a pensar e a sentir que as pessoas não devem falar mas fazer. O fazer é que engrandece e enaltece a vida. Neste momento estou a fazer muitas coisas, como sempre.
    P - Habitualmente faz várias coisas ao mesmo tempo?
    R - Sim. Durmo a sesta para ter a noite só para mim.
    P - Quando é que teremos uma exposição sua que englobe tudo quanto tem vindo a fazer nas artes plásticas?
    R - Produzir uma exposição no sentido da mostra pública significa preparar condições para que as pessoas tenham prazer de ver os objectos expostos. Isso significa ter um produtor. Enquanto autor, estou feliz com as coisas que faço, mas expô-las ao público significa ter de comprar muitas coisas. Eu sou rico de imaginação mas pobre em termos de dinheiro. A exposição depende de muitas circunstâncias que me ultrapassam.
    P - Frederico Ningi é seu nome ou pseudónimo?
    R - Praticamente já é meu nome... Apesar de faltar ainda alguns acertos jurídico-administrativos.
    P - Em sua opinião, para que serve a poesia?
    R - Para vivermos eternamente. Porque na poesia ama-se o pior ou o melhor do que se é ou do que se quer.
    P - Os seus livros, Os Címbalos dos Mudos e Títulos de Areia, em termos editoriais, apresentam uma mescla de poesia, desenhos e fotografias. E, pelo menos entre nós, acabam por ser livros incomuns. Todas essas facetas, poeta, pintor e fotógrafo, são indissociáveis em si?
    R - Não. Porque, como sabe, o vocabulário falado é menos rico que a impressão das mãos; é necessário mais que uma linguagem para traduzir o seu número, a sua diversidade e a sua plenitude. E porque também as figuras que a palavra, a pintura e a fotografia representam são os sinais da vida.
    P - Tanto na poesia como nas artes plásticas você tem vindo a revelar-se como um artista de intervenção. Ao olhar para a sociedade angolana actual, quais são os factores que o constrangem? E os que o exaltam?
    R - O que é isto: ser artista de intervenção!?... Se sou, fi-lo sem saber. Também é verdade que os artistas (escritores), enquanto pessoas e cidadãos, estão comprometidos directa ou indirectamente com o seu tempo.
    P - No seu entender quais são as tendências e os nomes mais interessantes da poesia angolana?
    R - As tendências são várias e os nomes mais interessantes são alguns!...
    P - Como define o amor?
    R - O amor é o lugar de eleição, de afeição, que nos impele para os objectos mais desejados.
    P - O que mais admira no ser humano?
    R - A extraordinária serenidade (a verdadeira solidariedade).
    P - E o que é que mais detesta nele?
    R - A sacanice da ignorância.
    P - O Mundo está em pleno processo de globalização. O que é que as literaturas de países periféricos como o nosso podem dar, como mais valia, a todo esse processo?
    R - Outras lições no conhecimento do mundo. Flagrantemente temos o caso John Max Coetzee, Prémio Nobel da Literatura 2003 (é da periferia).
    P - Como está em termos de contactos com artistas de outros países?
    R - Bem. Muito bem, graças a Deus.
    P - Durante algum tempo sustentou no Jornal de Angola uma coluna, "Escrevilendo", sobre as leituras que ia fazendo. É compensador esse exercício de "ler" para os outros?
    R - É compensador porque os homens dão sempre sentido à sua maneira de ler - e porque a escrita cria sempre um sentido que as palavras não têm à partida. É compensador porque escreviler é sempre um exercício na busca de orgasmos enormes da abrupta ingenuidade. Porque quando escrevo tento sempre exprimir essa minha congénita humanidade.
    P - Sente que os escritores angolanos são efectivamente valorizados e dignificados socialmente?
    R - Não sinto. Os escritores são vistos como as coisas ilustres e raras da sociedade e são usados muitas vezes politicamente com fins cosméticos.
    P - O que é que o facto de ser jornalista acrescenta ao facto de ser artista e vice versa?
    R - O facto é que a primeira condição é imediatamente activa e a outra é medianamente vadia (porque não tem pressa).
    P - Qual é o grande legado que gostaria de deixar aos seus contemporâneos e à posteridade?
    R - Os resultados dos meus prazeres de fazer.



     [Pintura -Ningi]

    quarta-feira, fevereiro 09, 2011

    Crítica ao ostracismo do negro na literatura, a Lei 10.639/2003, o afro-brasileiro e a África




    Lamentável! Foi o meu sentimento após a leitura da matéria “Negro: imagem e semelhança de quem” de Sônia Marta Coelho Pereira, inserida no caderno especial “A trajetória dos personagens negros, da África ao Brasil” da revista Conhecimento Prático: Literatura, nº 34 – janeiro/2011, páginas 27 a 38. É triste constatar que uma das raras revistas dedicadas à Literatura no mercado editorial brasileiro exclui a participação dos escritores negros no corpus literário nacional, orientação claramente seguida pela autora do artigo supracitado e que me remete ao que Roland Barthes definiu como “fascimo da língua”, pois a língua está “a serviço de um poder”. No caso, o poder da discriminação racial aos negros que norteia o pensamento brasileiro.

    A proposta do artigo é demonstrar a discriminação que sofreram – e ainda sofrem – os personagens negros da literatura brasileira e como esse processo tem sido revisto na contemporaneidade. As personagens esteriotipadas, apresentando-se nos textos literários em posições sulbaternas, coisificadas, animalizadas e ridicularizadas por causa do fenótipo foi uma constante em nossa literatura e reforçaram o preconceito racial que perdura em nossa sociedade.

    A autora até inicia o artigo reconhecendo “que por séculos o negro foi literariamente representado sob a ótica do preconceito”, contudo, o grave erro de sua explanação é não mencionar em nenhum momento autores(as) negros(as), recordando que a crítica brasileira mantinha absoluto silêncio a respeito do preconceito do negro na literatura como bem assinala o escritor e ensaísta, Cuti, em O leitor e o texto afro-brasileiro:

    foi preciso que os brasilianistas aqui viessem para desvendar o como se dava a tematização do negro brasileiro. Os intelectuais brancos do País sempre se mostraram avessos a esse empenho. Os primeiros livros que surgiram, questionando e fazendo levantamento de obras para o estudo da questão racial no âmbito literário, foram: A Poesia Afro-Brasileira, de Roger Bastide (1943); O Negro na Literatura Brasileira, de Raymond S. Sayers (1956-58) e O Negro na Ficção Brasileira, de Gregory Rabassa (1965).

    Sendo assim, após escancarada a postura do cânone literário brasileiro pela crítica estrangeira, a crítica nacional continua ignorando o fato de que temos escritores negros, relegando-os ao completo ostracismo nos grandes – e são tão poucos – meios literários do país. Essa postura é acompanhada pela autora do artigo aqui referenciado, pois recorre ao incompreensível erro de somente apresentar os personagens negros apropriados e interpretados por quem não é negro e que não oferece a esse personagem o papel de protagonista de suas narrativas nem expõe as vivências comuns a nós, negros.

    Seria de imensa valia que a autora fizesse um contraponto com a visão de um personagem negro sendo escrito por um autor negro, tornando, assim, o negro protagonista de sua história, revelando seus anseios, desejos, medos e principalmente expondo o seu ponto de vista frente ao racismo diário que todos nós sofremos neste país. É fundamental a leitura por esse viés como esclarece a Profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca em seu artigo Poesia afro-brasileira – vertentes e feições:

    A proposta de transgressão, que se efetiva também em textos da chamada literatura afro-brasileira, não pretende iluminar os lugares já indicados pela própria sociedade. Procura ultrapassar mesmo algumas posturas que, embora mais críticas, ainda se ligam a visão do negro “tutelado”, pois, ao falar por ele, silenciam a sua voz e imobilizam reações concretas para desarticular os papéis estabelecidos pela sociedade. (Fonseca, 2000, p.95)

    Durante a matéria aqui referenciada, a Profa. Coelho Pereira aponta a mudança de paradigma que se dá a partir de 1980, período em que os títulos “Os tambores de São Luís”, de Josué Montello, e “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro, como livros que procuraram “resgatar a imagem do personagem negro”. Talvez por desconhecimento, o artigo da autora ganharia em riqueza se revelasse e discutisse os diversos títulos lançados por escritores negros, principalmente a partir do final dos anos 1970 com a publicação das antologias “Cadernos Negros”, do coletivo Quilombhoje, que lança, desde 1978, anualmente e de forma ininterrupta uma coletânea de poesia e no ano seguinte, contos, somente de autores negros. Grandes nomes foram ali publicados e consagrados, tais como Cuti, Oliveira Silveira, Éle Semog, Miriam Alves, Lia Vieira, Lande Onawale, Conceição Evaristo, entre outros.

    Conceição Evaristo talvez seja o caso mais surpreendente e inexplicável caso desse ostracismo, já com vários prêmios literários e traduções em diversas línguas de seus poemas, contos e romances. Seus poemas demonstram o cotidiano da mulher negra, a consciência de sua condição em nosso país como muito bem assinala Eduardo de Assis Duarte, eles

    enfatizam a necessidade do eu poético de falar por si e pelos seus. Esse sujeito de enunciação, ao mesmo tempo individual e coletivo, caracteriza não apenas os escritos de Conceição Evaristo, mas da grande maioria dos autores afro-brasileiros, voltados para a construção de uma imagem do povo negro infensa dos estereótipos e empenhada em não deixar esquecer o passado de sofrimentos, mas, igualmente de resistência à opressão.

    É essa escrevivência, termo cunhado pela própria autora, que sempre foi excluída do cânone literário nacional, escrevivência típica de um eu enunciador negro que aparece nos textos literários dos escritores(as) negros(as), por isso a importância que uma publicação como a Conhecimento Prático: Literatura possua a sensibilidade e ofereça o seu prestigiado espaço para esses(as) autores(as), até então ignorados do cenário nacional e dessa maneira contribuir, de forma positiva e inclusiva, para a inserção do negro em nossa sociedade.

    A Lei 10.639/2003, o afro-brasileiro e a África

    Um outro ponto da matéria da Profa. Coelho Pereira que gostaria de abordar é no que diz respeito à implementação da Lei 10.639/2003 nas escolas. Preocupa-me abordagens excludentes das manifestações culturais afro-brasileiras. A lei, uma conquista histórica e que contou com a participação efetiva de vários movimentos negros organizados ao longo de décadas de militância, afirma que “torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”, assim como incluir “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”. Entretanto, venho percebendo a sutileza perversa do racismo à brasileira no contato com alguns professores, por conseguinte a má vontade das escolas em implementar a Lei. As justificativas são diversas, tais como a de que não há racismo no Brasil e isso seria uma forma de acirrar as diferenças étnicas – como se o(a) estudante negro(a) não fosse discriminado de maneira ostensiva e cotidiana no espaço escolar – e também o preconceito manifestado em relação às religiosidades afro-brasileiras.

    Bom, se uma Lei é criada para dar visibilidade à cultura afro-brasileira, por que ainda assim os escritores(as) negros(as) são excluídos das escolas e de uma matéria em uma revista especializada em Literatura como a Conhecimento Prático? A Profa. Coelho Pereira afirma que “apesar de essa lei não ter saído do papel em muitas escolas brasileiras, ela é uma grande conquista”, por que “a literatura negra começa a ganhar espaço nas escolas”. Mas para qual literatura negra aponta a autora, quais são seus agentes se no artigo de sua autoria nenhum escritor negro é apresentado? Esse é ponto crucial: a invisibilidade dos(as) escritores(as) negros(as). Por causa dessa incompreensível ausência, escorando-me em seu artigo e tratando-se do segmento infanto-juvenil, friso que não tenho nada contra a obra de Rogério Andrade Barbosa, aliás, aprecio bastante, porém faço questão de citar alguns bons livros e seus autores – todos negros – publicados, a maioria recentemente, que seguem as diretrizes da lei 10.639/2003: “A cor da ternura” de Geny Guimarães, “Betina” de Nilma Lino Rodrigues, “Os ibejis e o carnaval” de Helena Theodoro, “Kofi e o menino de fogo” de Nei Lopes, “Omo-obá: histórias de princesas” de Kiussam Oliveira e “Os nove pentes da África” de Cidinha da Silva. Para não ficar exaustiva, encerro a lista apenas para demonstrar que temos escritores(as) negros(as) lançando ótimos títulos nesse segmento.

    Faço uma consideração próxima aos autores africanos. Há na matéria “Negro: imagem e semelhança de quem”, pequenas seções nas laterais das páginas. Em uma delas, com o sugestivo título “Curioso”, lê-se o seguinte: “Muitos ficam espantados quando se deparam pela primeira vez com uma fotografia de Mia Couto: embora seja um dos mais proeminentes escritores africanos dos nossos dias, ele é branco” (p. 34). Pois é, o cânone das literaturas africanas de língua portuguesa é praticamente formado por escritores brancos.

    Entretanto, quando se olha atentamente para o mercado editorial brasileiro, constata-se que os livros publicados desse segmento são próximos daqueles publicados em Portugal, ou seja, segue-se a política racista dos portugueses em publicar escritores brancos, quando muito, mestiços. Mia Couto, apesar da exaustiva redundância de seus últimos romances, é um excelente escritor como no livro citado na matéria, “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, em “Terra sonâmbula”, e nos contos de “Estórias Abensonhadas” e “Vozes anoitecidas”. Sem motivo aparente, as editoras brasileiras ignoram autores, dentre tantos outros, como os angolanos João Maimona e João Tala; os novíssimos moçambicanos Sangare Okapi e Andes Chivangue; e o cabo-verdiano José Luis Hopffer Almada. Apenas para citar excelentes nomes consagrados, respeitados e premiados da produção contemporânea nos seus países. Sendo assim, bastaria um olhar sensível às obras desses e de outros autores por parte de nossos editores para que em uma apresentação de escritores africanos em sala de aula, a cor da pele não causasse espanto aos alunos. Quem é professor e que já mostrou fotos de autores africanos compreende o que estou falando.

    Para finalizar, a contundência de minhas observações é motivada por uma postura sincera, posso dizer indignada, diante de um artigo que se demonstra equivocado em seu conteúdo, e que, por isso, almeja o respeito que nossos escritores negros merecem no meio literário brasileiro. Não poderia ter uma posição de indiferença pelo que li, ainda assim continuarei torcendo para que uma revista respeitável como a Conhecimento Prático: Literatura atente-se para os agentes da literatura afro-brasileira e contribua para retirá-los da invisibilidade que lhes é imposta.


    Ricardo Riso
    Pesquisador de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa


    i CUTI. O leitor e o texto afro-brasileiro. In: < http://www.cuti.com.br/ > Acessado em 24 de janeiro de 2011.
    ii FONSECA, Maria Nazareth Soares. Poesia afro-brasileira – vertentes e feições. In: SOUZA, Florentina Souza, LIMA, Maria Nazaré (orgs.). Literatura afro-brasileira. Fundação Palmares e Centro de Estudos Afro-orientais (CEAO), 2006.
    iii DUARTE, Eduardo de Assis. “O BILDONGSROMAN afro-brasileiro de Conceição Evaristo.” ALEXANDRE, Marco Antônio (Org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.