segunda-feira, maio 02, 2011

Albas


De: Jorge de Oliveira – O País

NINGUÉM MEU AMOR


[Magritte]
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.




NÃO SOU ANTERIOR A ESCOLHA

Não sou anterior à escolha
ou nexo do ofício
Nada em mim começou por um acorde
Escrevo com saliva
e a fuligem da noite
no meio de mobília
inarredável
atento à efusão
da névoa na sala.






A UM FILHO MORTO

Ontem a comoção foi da espessura dum susto
duma árvore correndo
vertiginosamente para dentro do desastre
E já não choramos. Passamos
sem que o mais acurado apelo
nos decida
Nas camisas
teu monograma desanlaça-se.
Tua mão vê-o nos céus nocturnos
sabe que há uma ígnea
chave algures
Minha tristeza não tem expressão visível
como quando a chuva cessa
sobre a dádiva fugaz do nosso sangue
que hoje embebe a terra
É tal a ordem em nós
que um odor a bafio sai de nossas bocas
e uma teia de aranha interrompe o olhar
que te envolveu em vão.



O LIMITE DIÁFANO

Movo-me nos bastidores da poesia,
e coro se de leve a escuto.
Mas o pão de cada dia
à noite está consumido,
e a alvorada seguinte
banha as suas escórias.
Palco só o da minha morte,
se no leito!,
com seu asseio sem derrame...
O lado para que durmo
é um limite diáfano:
aí os versos espigam.
Isso me basta. Acordo
antes que a seara amadureça
e na extensão pairem,
de Van Gogh, os corvos.



HÁ POETAS COM MUSA

Há poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.


(Maputo) - Sebastião Alba, poeta moçambicano, dá, neste livro, uma autêntica lição de vida, intelectualidade, grande erudição e atenção à sabedoria que acompanha os humanos. O que é este “Albas”? É um diário de vida, notas que o SA foi escrevendo, dia-a-dia, acompanhando e criticando a vida como uma forma de evitar a morte, depois da experiência amarga por que passou numa instituição para dementes.

  1.  Um Homem completo, sem a parte material, já que, apesar da grande riqueza e domínio da consciência de vida, SA furtou-se à parte administrativa, seguiu, e isso vê-se neste diário, um regime de exclusão (da riqueza que não seja a meramente intelectual) social, vivendo só para si, sem relações humanas com o exterior.
  2. “A poesia não é só o domínio da língua, até porque ela é indomável. Mas a ternura pelos fracos: as crianças, as mulheres (tão vulneráveis), os velhos já senis. E os pobres animais bravios. Às vezes acordo, às quatro da manhã, a pensar em pardais nos ramos, com o bico sob a asa, fustigados pela chuva, à espera de que o sol raie.”
  3. Custa acreditar que existam pessoas assim (ainda existem? Talvez não), que vejam o mundo ao contrário, que vivam a contra senso, onde todos vão para a direita e eles acabam por ir no sentido oposto – uma espécie de negação da vida.
  4. Terá sido por opção própria ou por imposição das circunstâncias em seu redor? Estar-se-á perante um caso de culto da não vida? Do vício do à rasca? Hoje, faz-se tudo por dinheiro, perdeu-se a solidariedade, afundou-se o Muito Obrigado, elevou-se o Quanto é, a sobrevivência de um implica matar a do outro, os direitos de um não terminam onde começam o do outro (como se diz), começam em cima do outro.
  5. “Nos últimos 30 anos, já 30 tipos disseram que eu não sou um mau escriba; outros 30 que sou um bom sacana; 30 crianças agradeceram-me, com um beijo, as guloseimas; 30 outras esqueceram-se disso; pelo menos 30 pessoas murmuraram à minha passagem; 30 abraçaram-me com afecto; 30 pegaram-me furiosamente pela gola da camisa; e 30 deram-me um jeito com os dedos para que eu não fizesse má figura, ali onde estavam”.
  6. A música clássica reclama um lugar interessante neste “Albas”, fazendo companhia a um cidadão solitário, cheio de dignidade, muito culto, vazio de afecto. O diário, falado na primeira pessoa, doutro modo não seria de esperar, situa-se entre Moçambique, terra que o acolheu, e Portugal, onde passou os seus últimos dias.
  7. “Meu pai morreu; o Virgílio Ferreira também. Nenhum deles estará no mesmo substrato da memória dos homens. Mas queria falar de outra coisa, desta juventude. Quanto mais convivo com ela, em viagem, nos lugares por onde passo (e são muitos), menos acredito naquilo por que, alguns de nós, lutaram: ajudá-la a pensar.”
  8. Tem-se de (quase) tudo, nestas notas, a morte de Samora Machel, num desabafo à viúva, as esmolas que pediu, os polícias que o importunavam ou os guardas que não o deixavam dormir em locais que ele achava poderem servir de aconchego nocturno.
  9. E é também uma obra de amor, que o autor sente pelas filhas, por Che Guevara, seu ídolo, e ódio, sempre que vê uma asneira, uma situação em que a deselegância empurra os Bons Modos para o lado.
  10. “Nunca nos apercebemos dos acontecimentos mais solenes. Qual de nós se lembra de ter nascido? Qual de nós se recorda do momento exacto em que adormece? (e morre, às vezes, durante o sono)? Ou se apercebe, quando faz amor, de ter gerado um filho? A sombra do Universo recobre-nos, e ainda bem. A morte, não tenho qualquer dúvida, virá assim: com um leve suspiro exalado.”
  11. Existe um ponto da sabedoria que nos faz muito mal; quando se sabe muito, critica-se tudo e todos, não se consegue lugar nem pessoas com quem viver, a impaciência triunfa e rebolamos para um abismo onde a vida em comunidade se torna impossível. Saber muito torna-se uma espécie de veneno ou de feitiço que se vira contra o detentor, torna-o praticamente irracional, acabando por levá-lo à morte.

De: Jorge de Oliveira – O País

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