terça-feira, maio 03, 2011


A QUESTÃO DO FEMININO E A RECONFIGURAÇÃO DA MOÇAMBICANIDADE EM BALADA DE AMOR AO VENTO



RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo estudar o romance Balada de amor ao vento, da escritora moçambicana Paulina Chiziane, analisando como a obra aborda a questão das relações de gênero e como contribui para a reconstrução da identidade moçambicana após o período colonial. Narrado em primeira pessoa por uma mulher, o romance dá voz a uma personagem antes silenciada historicamente e denuncia a condição inferior feminina em Moçambique, desconstruindo signos socioculturais em busca de discutir a realidade vigente e reconfigurando a identidade nacional.
Palavras-chave: literatura africana, paulina chiziane, pós-colonialismo, literatura feminina.
Balada de amor ao vento, da escritora Paulina Chiziane, representa um marco na literatura moçambicana. Publicado em 1990, o romance foi o primeiro no país a tematizar o quotidiano do universo feminino, evidenciando signos socioculturais que denunciam o lugar secundário reservado à mulher. Mais do que retratar a situação feminina em um Moçambique colonizado, Paulina Chiziane põe em discussão como as negociações transculturais e as mudanças de sistemas políticos apenas perpetuaram a[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 2]submissão feminina, ao mesmo tempo em que, dando voz a essa personagem marginal da história do país, contribui para a reconstrução da identidade moçambicana no período pós-colonial. Concentraremo-nos, neste estudo, em analisar tais signos e compreender como a autora os desconstrói em busca da reconfiguração da identidade nacional e da vitalização da presença feminina na construção do cenário histórico e cultural de Moçambique.
A história nos é contada pela personagem Sarnau, mulher marcada pelo amor e pelo abandono. Escrito em primeira pessoa, o romance caracteriza-se por um modo lírico de narrar, o que, segundo Inocência Mata, reforça o processo rememorativo. A narrativa tematiza a memória como veículo de revitalização identitária, no caso de Balada de amor ao vento, “uma memória individual que se confronta com os ditames de uma sociedade tradicionalista” (MATA, 2000, p. 136). A personagem inicia a história já envelhecida, saudosa dos tempos de juventude, contrapondo-os com o seu presente, miserável. Ao questionar-se sobre a existência ou não do amor, Sarnau faz uma comparação da mulher com a terra, convidando o leitor a conhecer o universo feminino:
Tenho uma filha crescida que ainda estuda embora já tenha estudado muito. Umdia  disse-me que a terra é redonda. Por fora é toda verde e lá no fundo tem um centro vermelho. Como o melão. Que a terra é a mãe da natureza e tudo suporta para parir a vida. Como a mulher. Os golpes da vida a mulher suporta no silêncio da terra. Na amargura suave segrega um líquido triste e viscoso como o melão.
Quem já viajou no mundo da mulher? Quem ainda não foi, que vá. Basta dar um golpe profundo, profundo, que do centro vermelho explodirá um fogo mesmo igual à erupção de um vulcão (CHIZIANE, 2003, p.12).
A imagem comparativa da mulher com a terra, antes quase exclusivamente vinculada ao projeto nacionalista, vem agora carregada de subjetividade. É sobre a condição feminina no que diz respeito ao casamento, à poligamia, ao adultério que [ Nº 11 | Ano 9 | 2010 ] Estudos (1) p. 3]Paulina se põe a tratar. Com isso, uma personagem antes ignorada pelo discurso dominante ganha voz, reinscrevendo a história sob outra ótica. O foco agora são as relações de gênero estabelecidas no interior da sociedade, na busca de uma tomada de consciência de que essas relações desiguais são construídas socialmente. Ana Mafalda Leite (2003, p.78), tratando da relação entre questões coloniais e questões patriarcais, afirma que o tratamento dos temas sobre a mulher pressupõe uma visão alternativa e crítica em relação à visão construída por escritores-homens, sendo que a narrativa de gênero estabelece um diálogo crítico com a narrativa centralizada numa tradição masculina, permitindo, também, um alargamento temático, a partir de dentro, criando uma abertura no cânone literário, em formação. Por sua experiência particular, Sarnau mostra-nos como a mulher é criada para servir ao homem, para suportar sua indiferença, sua agressividade, sua rejeição, como se isso fosse um fardo natural o qual a mulher deve carregar e aceitar. Em várias passagens do romance, a personagem narra não apenas os fatos que comprovam a desigualdade de gênero, mas também enfatiza o discurso produzido pelos mais velhos e, em especial, pelas mulheres. Ainda que seja a mais atingida com essas práticas, destaca-se, assim, que a mulher é a principal difusora dessa ideologia. Afinal, é a ela atribuída a responsabilidade pela criação dos filhos. Em razão do seu casamento, Sarnau participa de um ritual de preparação no qual as mulheres de sua família juntam-se para dar-lhe o que a personagem chama de “conselhos loucos”:As minhas mães, tias, avós, fecharam-me há uma semana nesta palhota tão quente e dizem que me preparam para o matrimônio. Falam do amor com os olhos embaciados, falam da vida com os corações dilacerados, falam do homem pelas chagas desferidas no corpo e na alma durante séculos, Sarnau, fecha a tua boca, esconde o teu sofrimento quando o homem dormir com a tua irmã mais nova[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 4]mesmo na tua presença, fecha os olhos e não chores porque o homem não foi feitopara uma só mulher (CHIZIANE, 2003, p. 44).
A mulher traz no corpo e na alma as marcas dessa submissão secular, tendo-lhe sido ensinada como suportar tais açoites. Embevecida pelo fato de casar-se com o futuro rei da sua tribo, Sarnau demora a compreender o que significam tais palavras, questionando-se pela insistência dos ensinamentos: “Mas por que a tristeza? Não será o casamento um acontecimento feliz?” (CHIZIANE, 2003, p. 46). Quando ela própria experiencia essas práticas, Sarnau rememora os ensinamentos na busca de suportar, resignadamente, a sua condição. Ao ver o marido com outra em sua cama, corre para aquecer a água do banho do casal e ao ser chamada, retorna pondo-se de joelhos perante o “soberano”, baixando os olhos “como manda a tradição”:
- A água está pronta?
- Sim, pai.
- Hum, parece que choraste. Morreu alguém?
Arremessou-me um violento pontapé no traseiro que me deixou estatelada no chão.
Minutos depois voltei à posição inicial. Enviou-me uma bofetada impiedosa que fez saltar um dente [...] (CHIZIANE, 2003, p. 56).
No artigo “A escrita no feminino e a escrita feminista em Balada de amor ao vento e Niketche, uma história de poligamia”, Patrícia Rainho e Solange Silva (2007,p.523) afirmam que em Balada de amor ao vento não há questionamento da condição da mulher na sociedade moçambicana, restringindo-se a uma escrita no feminino:... a personagem [Sarnau] não se questiona quanto a certos valores instituídos e se estes limitam ou não as suas escolhas enquanto mulher. Existe apenas a narração de toda uma vida no feminino, através de Sarnau, que é preenchida com o legado [Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 5]cultural da oratura moçambicana e um ‘passeio’ pela vida cultural de Moçambique em tempo colonial através daquela personagem feminina, criada por Paulina Chiziane.
Definir toda a condição social apresentada no referido livro como um passeio pela vida cultural de Moçambique parece extremado reducionismo quanto ao discurso construído em Balada de amor ao vento. Se em nível do enunciado Sarnau não questiona explicitamente os valores instituídos pela sociedade na qual está inserida, em nível da enunciação, podemos, sim, identificar a discussão da submissão feminina, o modo como tanto a poligamia como a monogamia submetem a mulher aos interesses masculinos e aos da sociedade em geral, a influência dos mais velhos na vida dos mais novos, a questão da assimilação, a negociação estabelecida entre a cultura tradicional e os diferentes discursos históricos conservando o controle patriarcal exercido sobre as mulheres.
O fato de a narradora ser uma personagem iletrada que vive em um território ainda colonizado também precisa ser considerado. Além do mais, as escolhas narrativas não podem ser pensadas ingenuamente. O tom irônico e satírico utilizado pela autora para narrar os acontecimentos dão a medida da consciência crítica dessas escolhas. O trecho citado acima, por exemplo, em que o marido utiliza-se de ironia para debochar da mulher por seu suposto ciúme, seguido de um pontapé no “traseiro” e uma “bofetada impiedosa” que lhe faz “saltar um dente” não pode ser encarado como simples narração de uma vida no feminino, é também denúncia da realidade da mulher em África. O próprio questionamento que Sarnau se faz sobre o casamento ser ou não um acontecimento feliz aponta para a reflexão sobre a insatisfação da mulher, sobre a desigualdade da relação nessa instituição, além de outros momentos presentes ao longo do romance que despertam tais discussões. Há várias passagens em que a personagem[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 6]se enxerga como uma mercadoria. Sarnau assim descreve o momento da negociação do seu lobolo, embalado pelo mugir das trinta e seis vacas que constituiu o seu pagamento:“[...] Fazem-se cumprimentos e discursos; dinheiros tilintam. Coloca-se na esteira a cabaça de rapé e o pano vermelho; exibem-se peças de vestuário, pulseiras, colares, meu Deus isto é uma feira, eu estou à venda” (CHIZIANE, 2003, p. 38). O discurso de uma de suas sogras também surpreende, com um tom que desumaniza as esposas no casamento polígamo: “[...] Nós estamos aqui a mais, para aumentar o número de cabeças neste curral, e dar o nosso esforço nas machambas, apanhar com os feitiços das outras, o que é que nós somos?” (CHIZIANE, 2003, p. 53). Porém, não é só na relação poligâmica que a mulher sofre. Sarnau também se torna vítima da monogamia.
No início da sua juventude, apaixona-se por Mwando, que ela diz ser “um rapaz diferente, fala bem, conversa bem e tem cá umas maneiras!...” (CHIZIANE, 2003, p.15). Mwando tem, na verdade, características de um assimilado, estuda para formar-se padre e, como cristão, defende a monogamia. Ambos se apaixonam e vivem um romance, mas Mwando deixa-a para estabelecer um casamento monogâmico com Sumbi, mesmo ao saber que Sarnau encontrava-se grávida. Já na sua maturidade, após ter abandonado seu marido polígamo e ser deixada pela segunda vez por Mwando, Sarnau engravida de outro homem que também não reconhece o filho por se dizer cristão: Sou tão feliz com os meus dois filhinhos. O Joãozinho também não tem pai. O homem soube encher-me a barriga para abandonar-me logo em seguida. O pai afasta-o da sua mesa, não o deixa conviver com os outros irmãos, diz que é por ele ser casado e para mais não fica bem a um cristão dar a entender que tem filhos por aí. Mwando também é cristão, mas abandonou-me com uma criança no ventre. Ser cristão é uma coisa, mas a perversão e o afastamento dos deveres paternais porque se é cristão, é coisa que ainda não entendo bem (CHIZIANE, 2003, p. 137).[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 7]
Outra vez a ironia da autora. Entende-se muito bem: à mulher, não lhe sobram alternativas. Neste momento do romance, Sarnau põe-se a comparar a poligamia e a monogamia, e conclui amargamente: “Com a poligamia, com a monogamia ou mesmo solitária, a vida da mulher é sempre dura”. Para Hilary Owen (2008, p. 166), mais do que Balada ser um romance que retrata a vida da mulher no período colonial, a obra também representa, alegoricamente, o período de pós-independência, mais especificamente, a segunda metade da década de 1980, período em que foi escrito o livro. Para a autora, Paulina Chiziane retrata as formas como a cultura tradicional patriarcal de sua região interagiu com discursos históricos enfatizando o controle patriarcal exercido sobre as mulheres em troca de poder e valores entre os homens.
Dentre as suas políticas oficiais de modernização de Moçambique, a Frelimo havia condenado a prática da poligamia e do lobolo, impedindo o ingresso de homens “tradicionalistas” no partido. No entanto, Hilary Owen (2008, p.166-167) destaca que,em 1989, em ocasião do quinto congresso do partido, a Frelimo suspendeu essa sanção,a fim de receber mais apoio da comunidade internacional e também de apoiantes partidários, já que os líderes “tradicionalistas” continuavam a exercer influência importante sobre a população. Tal concessão foi considerada por muitas mulheres como uma traição neopatriarcal aos seus interesses. Importante ressaltar que Paulina vive na sua juventude a luta pela independência, tendo experimentado, também, o sabor da distopia. As reivindicações femininas passam a ter, então, valor de troca, evidenciando que a condição da mulher é fruto não simplesmente da questão colonial, mas sim de uma inferiorização de sua condição em detrimento do homem. Em Balada de amor ao vento, ainda que Mwando sofra sanções das leis de sua tradição e da colonização[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 8]portuguesa, o seu estatuto é sempre superior ao de Sarnau. Ainda que restrita, ele tem a possibilidade de escolha. A ela, resta-lhe a prostituição.O romance demonstra que a colonização das mulheres não foi idêntica à dos homens. Neste sentido, Balada funciona como um “novo começo” estratégico para a consciência política das mulheres moçambicanas, na medida em que expõe um mito marxista anticolonial de falsas origens, segundo o qual as mulheres foram assimiladas pelo masculino por serem alegadamente oprimidas ao nível econômico pelo capitalismo nos mesmos termos que os homens, sem qualquer referência a especificidades sexuais (OWEN, 2008, p. 174).
Outro aspecto que revela o tom pós-colonial do romance é a desconstrução de certas crenças que alicerçaram a busca etnográfica das raízes de uma identidade moçambicana perdida. De acordo com Hilary Owen, Chiziane utiliza de forma irônica a nostalgia pastoril e o mito do Gênesis como forma de contra-narrar a nação e o passado nacional em termos simbólicos femininos. A narrativa se inicia com Sarnau mostrando-se saudosa de sua juventude às margens do rio Save, em oposição ao seu presente repugnante na cidade. Estabelece-se a oposição entre o rural e o urbano, entre o Paraíso e a Queda. Resgata, nos moldes nacionalistas, a busca pelo sujeito africano imaculado, livre da influência colonial. Podemos ir além e observar o modo como Mwando é descrito inicialmente, fazendo-se referência a um nativo idealizado, forte, guerreiro.
Sarnau descreve a cerimônia de apresentação de jovens iniciados, aclamados pela comunidade como heróis após terem passado pelas duras provas dos ritos de iniciação.
Um, no entanto, destaca-se aos olhos de Sarnau. É Mwando, mas não apenas aos seus olhos, pois descobre ser ele o rapaz de quem os mais velhos comentavam na noite anterior: “Disseram que ele foi distinto e comportou-se lindamente mesmo nas provas mais difíceis” (CHIZIANE, 2003, p. 13). No entanto, essa distinção não se sustentará ao longo da história, mostrando-se fraco aos olhos da tradição e também segundo os[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 9]moldes do colonizador. Esse herói moçambicano é, na verdade, um assimilado, ou melhor, uma personagem marcada pelo conflito cultural, já que não partilha das crenças africanas, mas tampouco se torna ou é reconhecido como um português. Ainda que seminarista, participa dos rituais de iniciação e vive um romance com Sarnau, e por conta do descobrimento desse relacionamento, acaba sendo expulso do seminário.
Abandona Sarnau grávida, visto que sua família arranjara-lhe um casamento monogâmico e lobolado com Sumbi, mas por esta não cumprir com as exigências de uma esposa nos moldes tradicionais, é rechaçado pelos mais velhos por representar um risco às tradições, reagindo com os argumentos de um assimilado. Afasta-se da família para preservar seu casamento, mas é traído e abandonado pela esposa. Ao envolver-se com a mulher de um sipaio (soldado que defendia a administração colonial) e ser encaminhado à esquadra portuguesa, toda a sua destreza com a língua do colonizador não foi suficiente para livrá-lo da deportação, pelo contrário, soa como escárnio aos ouvidos dos portugueses. Além do mais, seus documentos não lhe garantiram os privilégios de um assimilado, sendo visto como um oportunista. Quando deportado para Angola, aproveita-se dos conhecimentos adquiridos no seminário para livrar-se do trabalho pesado e ganhar dinheiro. Reinventa-se como “Padre Moçambique”, entoando salmos em rituais fúnebres para os muitos companheiros mortos nas plantações:...um irônico e irresponsável “Pai da Nação” que trai os seus putativos companheiros cidadãos, a sua raça e os seus aliados de classe, tão prontamente como fez com Sarnau. Mwando concilia a proteção dos seus companheiros de trabalho e das autoridades coloniais em parte porque finalmente aprendeu a imitar os comportamentos apropriados ao colonialismo (OWEN, 2008, p. 171).
O colonizador, em Balada de amor ao vento, presentifica-se pela figura do assimilado, sem outra presença significante na obra. O foco é o sujeito moçambicano,[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 10]com suas crenças, influências e contradições. Se tomarmos o romance como uma representação alegórica do final dos anos de 1980, Mwando não representaria, também, muitos dos companheiros de luta da autora que traíram seu povo após a Independência em favor de seus interesses pessoais? Ao relatar a viagem para o degredo, a narradora faz menção aos escravos libertos que se comportam cruelmente com seus irmãos escravos. Por meio de uma série de analogias, a autora explora e expande essa relação a outras gerações, como a fazer um momento de reflexão que ultrapassa o episódio da deportação, voltando novamente para o enredo do romance:Os pretos gritavam para outros como se pretos não fossem. O escravo liberto torna-se tirano. O homem alcança as alturas cavalgando nos ombros dos outros. A galinha no poleiro caga despreocupada para as que estão em baixo ignorando que no próximo pôr do sol a situação pode inverter-se. A força de um mede-se pela fraqueza do outro. Um irmão mata outro irmão para demonstrar a sua força ou sobrepor-se-lhe. Em todas as gerações há exemplos de indivíduos que dizimam outros para assegurar o poder. Os capatazes pretos empurravam os pretos, obrigando-os a subir a escadaria para a proa do navio (grifo nosso) (CHIZIANE,2003, p.118-119).
Outro signo que Paulina se apropria para desconstruí-lo é o mito do Gênesis. Mwando e Sarnau são comparados ao casal original da Criação. Assim como Eva tornou-se a traidora por mediar a mensagem da serpente, em termos coloniais, a mulher é vista como traidora por se caracterizar como facilitadora da penetração no paraíso nativo através da mediação lingüística e sexual. Hilary Owen (2008, p. 170) destaca que Paulina Chiziane inverte os processos de culpabilização da mulher expondo como a culpa transcultural e a transgressão masculina se fazem projetar sobre as mulheres e, portanto, mostrando que o homem colonizado é tão ou mais suscetível de agir como tradutor traidor. A comparação entre os casais é explicitamente feita quando se descreve [ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 11] o namoro entre Mwando e Sarnau. Enquanto ela compreende o início do relacionamento sexual de forma natural, como uma sintonia entre homem e natureza, Mwando entende o como pecado, sendo Sarnau a culpada por lhe tirar a inocência. Interessante observar como a serpente é vista de forma totalmente diferente pelas duas personagens. Quando se põe a refletir sobre sua iniciação sexual com Mwando, Sarnau remete-se à flora e à fauna como cúmplices do seu amor: “A serpente, junto ao ninho, fecha os olhos, discreta, não vá ela interromper os beijos dos pássaros que se amam, crescem e se multiplicam” (CHIZIANE, 2003, p.19). Diferentemente de Sarnau, tomado por suas crenças católicas, Mwando fica espantado: “Como Adão no Paraíso, a voz da serpente sugeriu-lhe a maçã, que lhe arrancou brutalmente a venda de todos os mistérios. Sim, escutou os lábios de uma mulher pronunciando em sussurros o seu nome, despertando-o do ventre fecundo da inocência” (CHIZIANE, 2003, p. 19) .No entanto, não é Sarnau, mas sim Mwando que se comporta como traidor. É ele quem assimila a cultura do colonizador, traindo tanto Sarnau como os seus companheiros do degredo em Angola ao trabalhar a favor dos interesses dos portugueses. Esses, vendo sua facilidade em lidar com os demais escravos por meio da manipulação da palavra cristã, o tomaram como aliado: Muito depressa os colonos reconheceram nele o homem de que precisavam, o pacificador das revoltas nas roças, com a doutrina do sofrimento da terra e recompensa no céu. Deram-lhe um estatuto diferente e casa independente, tinha amigas em enxame e das boas. Trabalhava pouco nas machambas, ocupando a maior parte do tempo nos rituais da Igreja (CHIZIANE, 2003, p.127). As relações de poder assimétricas também se refletem na obra de Paulina pelo cruzamento da expressão oral e escrita. No sistema colonial, o homem obteve maior contato com a escritura portuguesa, enquanto as mulheres são vistas como guardiãs [ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 12] culturais da oralidade africana primordial. Em Balada de amor ao vento, essa assimetria se reflete pelo iletramento de Sarnau e pelo domínio por Mwando do sistema de escrita da língua portuguesa. Mais uma situação que reafirma a propensão do homem colonizado para a traição. Não é a mulher, mas o homem, Mwando, que se apropria da língua do colonizador, de sua cultura, e as utiliza para trair o seu povo. A oralidade perpassa o romance por meio de Sarnau, que ao longo do texto relata as tradições, as crendices, os rituais e insere historietas, típicas da tradição oral, dentro da história principal. Owen, porém, contesta esta visão estritamente oral em que aparentemente se encaixa a personagem feminina. De início, ela julga o iletramento de Sarnau como uma invenção nativista, já que ela se põe a escrever sua história. Além disso, o tom irônico utilizado para toda a tradição cultural, reconstruindo-a, transforma-a em uma contranarração do discurso estabelecido, ao mesmo tempo em que responde à ânsia de se reconhecer a identidade africana, mais especificamente a moçambicana, já que suas histórias serão lidas principalmente pelo público estrangeiro, visto que, embora seja o português a língua oficial de Moçambique, uma  pequena porcentagem da população domina seu sistema de escrita. Tal aspecto reflete uma das características mais marcantes da escrita de Paulina Chiziane: a evocação da tradição como força propulsora para a modernidade do relato, fazendo com que memória e tempo presente, ancestralidade e modernidade confluam em sua narrativa. Em Balada de amor ao vento, a autora agencia a oralidade com uma tipologia de texto tipicamente européia: o romance.
A sabedoria oral narrada no texto é ironizada pelo discernimento satírico e retrospectivamente experiente de Sarnau sobre as crenças tsonga conservadas nestas declarações orais, à medida que Sarnau contesta os constrangimentos[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 13] tradicionais da obediência feminina, aos quais as mulheres da sua família a sujeitam (OWEN, 2008, p. 173).
Há, pelo menos, mais um momento em que a autora ironiza as convenções estabelecidas, dialogando com a cultura do colonizador. Ao ser abandonada pela segunda vez por Mwando, Sarnau põe-se a procurar-lhe desesperada pela praia e reporta-se às ondas do mar, indagando sobre seu amado, à maneira das cantigas de amigo: “Ó ondas do mar, não viram o meu amor? Verdes palmeiras, aves do céu, peixes, caranguejos, barcos acostados, por onde anda meu amor?” (CHIZIANE, 2003,p. 113). Mas ninguém a escuta, nem a natureza, nem os homens que ali estão, vendo-se novamente sozinha, cumprindo sua sina de mulher: “As águas não me responderam continuando o seu marulhar maravilhoso.[...]Os homens continuavam absortos, ninguém me via, ninguém me ligava e eu sofria sozinha. O sol da manhã foi mais amigo, espalhando a minha imagem nas águas em rebuliço, mostrando bem transparente a desgraça que era o meu fardo” (CHIZIANE, 2003, p.114)
Esse fardo, Sarnau compartilha com as outras mulheres, explicitando tal cumplicidade em vários momentos da obra. O mais significativo, porém, é em relação a Phati, a quinta esposa do seu marido Nguila Zucula, a qual trouxe muito sofrimento a Sarnau. É a sua existência que a personagem responsabiliza o distanciamento do marido e é também por sua denúncia que nossa protagonista é obrigada a fugir com Mwando para não ser assassinada por Nguila. Ambas se odeiam por disputar o amor do mesmo homem no casamento polígamo. No entanto, Sarnau vê-se obrigada a dar à filha seu nome, já que a menina estava entre a vida e a morte e sua doença era atribuída ao sofrimento da alma da rival. Nomear a filha com o nome da rival é irmanar-se com o sofrimento de Phati, é simbolizar que ambas são vítimas de um mal maior. Neste [ Nº 11 | Ano 9 | 2010 Estudos (1) p. 14] sentido, Balada de amor ao vento é uma obra feminista aos moldes africanos, ela simboliza não uma bandeira hasteada contra o mundo masculino, mas instrumentaliza a mulher a compreender a sua posição no cenário social a que pertence, recrutando-a a uma luta que busca uma relação menos desigual entre os sexos. As mulheres dos seus livros, como a própria Paulina afirma, lutam por “um espaço de liberdade dentro de uma relação de interdependência e complementaridade com o mundo masculino” (GOMES, 2001, p.7).
Referindo-se à Balada de amor ao vento, Hilary Owen (2008, p.165) afirma que “o romance provocou certo grau de escândalo porque quebrou o tabu cultural através da representação de uma mulher que expressa o desejo sexual”. Em um de seus pronunciamentos, alguns anos após sua publicação, Paulina Chiziane exprime certa ansiedade em ouvir críticas no que diz respeito à qualidade estética de sua obra:A reação ao meu livro? Bom, é o primeiro livro feminista que sai em Moçambique.
Até agora ainda não encontrei muitas pessoas que me falassem da qualidade em termos estéticos, a esse nível superior.[...] Realmente, em termos de tema, eu penso que consegui atingir o objetivo. Agora, em termos estéticos... (CHIZIANE, 1994,p.299-300).
Anos depois, com a expansão ainda incipiente, porém significativa, dos estudos das obras literárias africanas de expressão portuguesa, a qualidade estética do livro parece ser inquestionável. O tom lírico que perpassa o romance, a simbologia que constrói, ao mesmo tempo em que desconstrói signos que sustentaram a estética anterior, além de inúmeros outros aspectos incapazes de serem abordados neste breve trabalho faz de Paulina Chiziane uma das maiores escritoras africanas da atualidade.
Reduzir o romance a um mero passeio pela vida no feminino é desconsiderar a força da enunciação que tanto enriquece a linguagem literária.[ Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 15]

ABSTRACT: The present paper aims to study the novel Balada de amor ao vento by the Mozambican writer Paulina Chiziane, analyzing how the work approaches the gender relationship point and how it contributes to the rebuilding of the Mozambican identity after the colonial period. It is narrated in the first person by a woman, the novel gives opportunity to a character who was historically silenced before and denounces the feminine inferior condition in Mozambique, by getting socialcultural signs apart in order to discuss the current reality and reshaping the national identity.
Keywords: african literature, paulina chiziane, postcolonialism, feminine literature.

REFERÊNCIAS
CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. 2 ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2003.

CHIZIANE, Paulina. Entrevista concedida à revista Maderazinco. Disponível em:
http://www.maderazinco.tropical.com.mz/edicIII/entrevista/paulina.htm, acesso em: 01 de set.de 2004.

CHABAL, Patrick. Vozes moçambicanas. Literatura e nacionalidade. 1 ed. Lisboa:Vega, 1994.

LEITE, Ana Mafalda. Paulina Chiziane: romance de costumes, histórias morais. In:Literaturas africanas e formulações pós-coloniais. Lisboa: Colibri, 2003. p.75-87.

MATA, Inocência. Paulina Chiziane: uma coletora de memórias imaginadas. In:
Metamorfoses. Lisboa: Edições Cosmos, 2000.
| Nº 11 | Ano 9 | 2010 | Estudos (1) p. 16
OWEN, Hilary. “A língua da serpente: a auto-etnografia no feminino em Balada de
amor ao vento de Paulina Chiziane”. In: RIBEIRO, Margarida Calafati e MENEZES,

Maria Paula (org.). Moçambique. Das palavras escritas. Porto: Afrontamento, 2008. p.161-175.

RAINHO, Patrícia e SILVA, Solange. “A escrita no feminino e a escrita feminista em Balada de amor ao vento e Niketche, uma história de poligamia”. In: MATA, Inocência e PADILHA, Laura (org.) 

A mulher em África. Vozes de uma margem sempre presente. Lisboa: Colibri, 2007.

TEDESCO, Maria do Carmo Ferraz. Narrativas da moçambicanidade. Os romances de Paulina Chiziane e Mia Couto e a reconfiguração da identidade nacional. Brasília: Universidade de Brasília, 2008, (tese de doutorado).

Por: Érica Alves Rossi (Mestre em Estudos Literários, UNESP – Araraquara)

Um comentário:

  1. Estimado Editor do Blog. Faço saber que a foto postado neste artigo não tem nada a ver com a escritora moçambicana Paulina Chiziane. Recomendo que procure com maior atenção e substitua-a, para não induzir ao erro quem não a conhece.
    agradecido.
    Mário Lhamine

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