Os dentes do Soba
[António Quadros]Em Outubro de 1945, um arrolamento extraordinário estava na iminência de ocorrer na Ombala de Tchiaia, capital de cinco aldeolas plantadas no cimo de montanhas vizinhas, que mais se pareciam com dedos de uma mão tentando tocar o céu: Pedreira, Kandongo, Samangula, Kawio e Tchiaia, hoje pertencentes à comuna do Sambo, município da Tchikala Tcholoanga, na província do Huambo.
Ia ao rubro a ansiedade na Ombala, como de costume em véspera de arrolamento. Cada família procurava catanar a idade dos filhos, o que contribuiria na diminuição dos impostos, o mesmo acontecendo com o número de animais domésticos. Menos posses, melhor. O que restava fazer só dependia da visita do Chefe do Concelho, branco português conhecido por observar ao mínimo pormenor até mesmo os pelos de um porco. Andava intrigado o Chefe do Concelho com a notícia do registo de dezassete óbitos em oito meses. E de nada o convenceram as justificações das autoridades, que atribuíam tal azar ao aparecimento do dragão, que fora visto por poucos sobrevoando o caminho do cemitério.
Era fenómeno raríssimo no meio rural, mas havia na aldeia uma mulher (chamada Kutala) em condições de dar conta do recado em matérias de recenseamento. Fora logo cooptada para o posto de secretária-tradutora-dactilógrafa da Ombala. Despachava diretamente o expediente com o Soba.
Mbocoio, o felizardo marido da Kutala, não gostava nada da ideia de se trabalhar com o Soba — apesar de iletrado, o Soba era muito astuto, carismático e, dir-se-ia até, bonito. Mas foi aconselhado pelos amigos a ver o lado positivo da coisa. Ser marido da mulher mais influente no poder dar-lhe-ia um estatuto visível, uma gratificação até acima do razoável. Lá o homem aceitou, mas não sem antes propor uma das irmãs da esposa para auxiliar na lida doméstica e cuidar do Velho, o bebé do casal, enquanto a mulher fosse trabalhar — Velho era a alcunha do bebé, uma solução arranjada para evitar o desgaste do sagrado nome do avô paterno, que era seu chará.
— Ó pai do Velho, tem uma coisa para te falar.
— Sim…?
— O Soba disse para o outro, ainda, deixar de passar a mão na minha cara. É para evitar espinhos, porque o Chefe do Concelho está para vir… e a cara é importante.
— Como assim?
— Bom, ele me falou que, como escriturária-dactilógrafa da regedoria, a minha cara tem que brilhar como bebé. E mão de homem faz borbulhas.
— Tá bem.
Não gostou nada do recado, mas suportou. Por mais que lhe custasse travar a mão toda a vez que ela teimasse em fazer um carinho involuntário à esposa, sujeitou-se durante semanas. Era coisa passageira, acreditava. Mas a visita nunca mais acontecia e, para a sua surpresa, surgia a mulher com mais um recado do Soba:
— O Soba me falou, fala no pai do Velho ainda para deixar de me dormir em cima. — respirou fundo para buscar a coragem de dizer o resto. — Falou a parte de sentar está a ficar rasa e as mamas estão a ficar grande.
— Então, daqui p’ra frente é só de lado? É isso?
— Acho que sim…
Contrariado, Mbocoio concordou. Como se não bastasse a proibição de tocar o rosto da mulher, vinha agora mais essa de fazer amor só de lado. Sujeitou-se, todavia, outra vez. Mais um sacrifício pela subida da mulher no trabalho. Seria passageiro porque, pelo tempo, a visita estaria perto de acontecer, acreditava o homem. Volvidos três penosos meses, era ainda incerta a chegada do Chefe do Concelho. Tudo indicava que ficaria para o ano seguinte. Mbocoio começava a acreditar que as limitações do quarto acabariam brevemente.
— Ó pai do Velho — disse outra vez a mulher —, o Soba me apanhou a sonegar e me falou que isso tudo é cansaço de fazer as coisas de lado. Falou então para o pai do Velho pensar bem, ficar ainda uns dias sem fazer nada…
— Mas é para chegar aonde com essa merda de recados? — interrompeu, colérico, Mbocoio. — Porra! Até aonde vai o poder desta merda do Soba?
— Vamos falar no pescoço. — rogou, impotente. — A essa hora, a aldeia está a dormir.
— Mas, para dormir com a minha mulher, ele é que tem que autorizar? Merda, pá!
— Você vai chamar de merda a autoridade?
— Merda mesmo. É isso! Merda, merda d’homem! Ele pensa que é patrão até aonde?
— Mas ele não é só meu patrão. É também regedor da Ombala.
— Safótalá, que eu mando lixar! Estou na minha casa!
— Mas ele também já viu muita coisa nesta vida. É mais velho, é a experiência dele.
— Ele mazé te quere…
— CHEGA! Olha que o nervo só te leva, não te traz!
— Chega nada! Aqui na minha casa, autoridade sou eu!
— Ndifila nye[1]?
[[1] Que mal fiz para me matares?]
Mbocoio ficou estático, articulações bloqueadas pelo susto. Cometera o mais grave erro da história do seu povo. Era o primeiro a agredir um Soba, e o que era pior, ao ponto de partir metade do dente incisivo esquerdo. O Soba convocou os mais próximos conselheiros para uma reunião de emergência. A assembleia visava evitar que o Soba, figura que só participa dos contenciosos como juiz, aparecesse como vítima, o que fragilizaria a sua soberania. Decisão: guardar o segredo bem fechado, dando a Mbocoio o castigo de ser o tocador de sino da Ombala por tempo indeterminado, sendo inclusive subordinado da esposa.
São os segredos e os sacrifícios que fazem o poder, portanto este não seria o primeiro nem o último pela revitalização da mística da aldeia. Mbocoio continuou pouco valorizado no seu posto de tocador de sino.
In, "A Última Ouvinte", copyright Gociante Patissa, União dos Escritores Angolanos, 1ª Edição, Luanda, 2010 (versão com base no novo acordo ortográfico)
[Gociante Patissa*, nome literário de Daniel Gociante Patissa, é bacharel em Linguística Inglês na Universidade Katiavala Bwila (ex-Agostinho Neto), onde frequenta o último ano do curso de licenciatura. Nasceu na comuna do Monte-Belo, município do Bocoio, interior da província de Benguela, que veio a abandonar devido à guerra civil, em 1985, para residir na cidade costeira do Lobito. Descobriu as inclinações pela literatura e comunicação social, em 1996, quando frequentava as gravações de um programa infantil da Televisão Pública de Angola, na cidade de Benguela. Na adolescência teve uma efémera passagem pela TV como aprendiz de repórter desportivo. Entrou para o sector da sociedade civil, com a fundação de ONG angolana AJS (Associação Juvenil para a Solidariedade), em 1999. Ressurgiu na rádio como moderador e realizador freelance de programas de debate/mesa-redonda, em 2003. Em 2008 estreou-se com o livro de poesia "Consulado do Vazio", uma colecção de textos escritos em 12 anos. Em 2009, logo após a submissão de manuscrito de contos inéditos, foi admitido a membro da União dos Escritores Angolanos, com a qual lança em 2010 a obra "A última ouvinte". É bloguista, sendo autor do primeiro (e o único) blog em Língua Umbundu, predominante no centro e sul de Angola.www.angodebates.blogspot.com;www.ombembwa.blogspot.com]
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